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publicado em 27.04.2017
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Sumário: Introdução. 1 O dever de fundamentação e a legitimação da função jurisdicional. 2 Estrutura do dever de fundamentação no novo CPC. 3 Resposta à tese da inaptidão. 4 Resposta à tese da intromissão. Conclusão. Referências. Introdução O capítulo 1 trata do papel da fundamentação em dois diferentes modelos de jurisdição, um deles baseado nas qualidades subjetivas do julgador, o outro, na aceitabilidade objetiva das decisões. Será abordada a tensão entre a busca pela celeridade da prestação jurisdicional e o ideal de otimização justificatória das soluções jurídicas, com seus respectivos reflexos na realização da tarefa judicial. O capítulo 2 dedica-se a analisar a estrutura normativa do dever de fundamentação judicial que se extrai do art. 489, §§ 1º e 2º, do novo CPC e verificar sua aplicabilidade às questões de fato e de direito, bem como expor objeções, já apresentadas ou possivelmente cogitáveis, às inovações introduzidas. O capítulo 3 enfrenta a objeção da inaptidão das disposições do código para dar efetividade à norma constitucional que impõe a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, sob a alegação de tratar-se de problema estrutural e cultural. Investiga-se a formação e a consolidação do entendimento jurisprudencial, até então existente, que limita a abrangência do dever de fundamentar, e analisam-se as condições para que a normatividade ora introduzida ganhe efetividade na prática judicial. Por fim, o capítulo 4 enfrenta a objeção de que as novas disposições processuais constituem intromissão indevida do legislador no modo de realização dos atos judiciais decisórios. Investigam-se a relação entre fundamentação judicial e cooperação processual e o papel das partes para alcançar soluções jurídicas dotadas de alto grau de justificação, bem como a necessidade de observância de etapas de desenvolvimento argumentativo na fundamentação decisória. 1 O dever de fundamentação e a legitimação da função jurisdicional Não há como identificar uma linha evolutiva regular acerca da fundamentação das decisões judiciais (GOMES FILHO, 2001, p. 52). Embora seja considerada, nos dias de hoje, elemento indispensável para uma adequada prestação jurisdicional, a apresentação das razões de decidir nem sempre foi exigida. Pode-se dizer que a estatuição normativa de um dever de fundamentar é relativamente recente. 2 Estrutura do dever de fundamentação no novo CPC Dispõe o novo CPC, em seu art. 11, que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade". Nisso não há novidade alguma sob o aspecto normativo, já que repete o comando constitucional do art. 93, IX, da Constituição. Nova é, contudo, a exigência de elementos próprios de um modelo analítico de fundamentação, conforme previsão do art. 489, §§ 1º e 2º, verbis:“Art. 489. [...] § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.” Da leitura das disposições transcritas, vê-se que o § 1º do art. 489 do Código não diz o que é uma decisão fundamentada, mas dá exemplos de decisões que não podem ser tratadas como se o fossem. São casos em que a deficiência de fundamentação é tão grave que deve ser juridicamente equiparada à sua ausência. Por meio de uma formulação negativa, são fixados parâmetros indiretos para o conteúdo mínimo da fundamentação judicial (CARDOSO, 2015). A não observância das exigências estabelecidas impõe o reconhecimento de uma fundamentação fictícia (ou aparência de fundamentação). Já o § 2º do mesmo artigo, que trata da ponderação de normas, prescreve diretamente deveres positivos, que devem ser acrescidos às proibições do parágrafo anterior sempre que a decisão tratar de uma colisão normativa. Em que pese a ênfase do novo CPC na fundamentação das questões jurídicas, com a previsão de deveres específicos para a justificação quanto à aplicação de normas, conceitos jurídicos indeterminados e precedentes (art. 489, § 1º, incisos I, II, V e VI), também a fundamentação sobre questões fáticas foi objeto de preocupação. À primeira vista, as disposições específicas acerca da matéria de fato parecem tímidas, pois se limitam a prescrever que "o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento" (art. 371). Mas elas se complementam com os deveres de apresentar razões individualizadas (art. 489, § 1º, III) e de enfrentar os argumentos relevantes das partes (art. 489, § 1º, IV), que são aplicáveis tanto às razões de fato como às de direito. Críticas a essa regulação da fundamentação judicial podem partir de linhas de argumentação diversas. A primeira poderia sustentar que a nova normatização pouco ou nada pode fazer para dar efetividade prática ao dever de fundamentar. Se nem mesmo o status constitucional foi suficiente para conferir eficácia social à exigência de fundamentação, seria difícil supor que uma lei ordinária lograsse tal êxito. A deficiência de justificação das decisões seria um problema da cultura judiciária, muito mais preocupada em resolver os casos com celeridade que argumentar para convencer; ou seria decorrência da falta de condições estruturais para a viabilização do cumprimento ótimo do dever de fundamentar, dado o elevado número de processos, a carência de servidores e magistrados e a má divisão da carga de trabalho. Em qualquer das hipóteses, a aplicação deficitária da norma constitucional não se resolveria por meio da lei processual, e sim por medidas de gestão que propiciasse aos juízes aprimoramento das condições de trabalho mais adequadas e fornecesse estímulos à otimização justificatória das decisões. Chamarei essa primeira classe de objeções de tese da inaptidão. Outro feixe de objeções sustentaria a ideia de que não cabe à lei processual estabelecer a priori como o Poder Judiciário deve fundamentar. Impor ao juiz que siga passos ou roteiros para justificar suas decisões significaria invadir espaços próprios da atividade judicial e da crítica doutrinária. Sob o ponto de vista prático, seria cabível indagar, por exemplo, por que haveria de ser nulificada uma decisão que, embora fundamentada de modo deficiente, em desacordo com os parágrafos do art. 489, teria aplicado corretamente o direito ao caso. Pode parecer irracional fazer retroceder o processo, impondo-se a prolação de uma nova decisão, para se adotar, ao final, idêntica solução do litígio, apenas acrescida de fundamentos melhores. Sob o ponto de vista teórico, poderia ser questionada a conveniência ou mesmo a viabilidade de se conferir status legislativo a proposições da teoria da argumentação jurídica. Conceitos como os de colisão de normas e ponderação (§ 2º) são objeto de profundo dissenso, e chegam a ter sua utilização peremptoriamente refutada por parcela da doutrina. Acadêmicos podem sugerir a observância de determinada estrutura da fundamentação, e talvez fosse salutar que a jurisprudência, na lapidação constante do direito, fixasse certos parâmetros justificatórios para certos tipos de caso, mas a lei não poderia tomar partido de disputas doutrinárias que ocorrem no âmbito da teoria da decisão e do discurso jurídico. Chamarei essa segunda classe de objeções de tese da intromissão. O enfrentamento das teses da inaptidão e da intromissão são objeto dos capítulos seguintes. 3 Resposta à tese da inaptidão A tese da inaptidão levanta dificuldades de operacionalização do dever de fundamentar que não podem ser subestimadas. Elas não têm o condão, entretanto, de ilidir a viabilidade e a conveniência de o tema ser tratado no novo CPC. A previsão da obrigatoriedade da fundamentação judicial no plano constitucional não significa que nada mais reste a fazer no plano legislativo. É provável que a Constituição talvez não seja mesmo o veículo próprio para estabelecer a estrutura do dever de fundamentar e os critérios para dá-lo como cumprido a cada caso. Os doutrinadores poderiam tê-los construído, com respaldo em uma teoria da argumentação jurídica, mas, se eles permaneceram silentes, ou não foram ouvidos, inegavelmente abre-se, ou mesmo impõe-se, um espaço para atuação do legislador. A vocação para orientar ou reorientar condutas humanas está no âmago da própria razão de ser da atividade legiferante. Pensar que o direito nada pode fazer para mudar a prática judicial seria render-se a algo como um determinismo corporativo.É verdade que muitos juízes parecem adotar uma postura reativa diante do art. 489 do novo CPC, haja vista alguns enunciados aprovados na primeira discussão pública sobre o tema. Lembre-se, contudo, que a chamada "cultura judiciária" não se forma no vácuo; ela é o resultado da intervenção de diversos fatores, dentre os quais os relativos à sua formação acadêmico-profissional e os advindos das exigências da própria sociedade quanto à prestação jurisdicional. Em relação à formação dos juízes, deve ser apontada, inicialmente, a grande influência da visão instrumentalista do processo na pré-compreensão dos magistrados, seja nos bancos universitários, seja nas escolas oficiais de preparação e aperfeiçoamento. A instrumentalidade, tal como amplamente aceita pela doutrina no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século presente, colocava a figura do juiz no centro da relação processual. Mais do que instrumento do direito material, o processo era visto como instrumento de concretização de valores constitucionais por meio da jurisdição. Ao juiz competia exercer um papel ativo em prol da realização dos fins do processo, e isso podia autorizar que o julgador suprisse a atuação deficiente das partes. O instrumentalismo opunha-se ao juiz desinteressado, fechado em cubículos e preso a formalidades, mas a ênfase do reproche talvez tenha contribuído para o surgimento de juízes que pretendiam carregar nos ombros peso demais. Os defensores da visão instrumentalista, obviamente, nunca desconheceram ou menosprezaram o dever de fundamentar. Ocorre que os fundamentos da decisão, em um tal modelo, eram da responsabilidade quase exclusiva do juiz. A correção da decisão era medida sobretudo pelos fundamentos constitucionais substantivos manejados pelo julgador, e não tanto pela correspondência das razões de decidir às razões invocadas pelas partes. Daí a jurisprudência estabelecer entendimentos como os que seguem: “[...] O órgão julgador não está obrigado a rebater pormenorizadamente todos os argumentos apresentados pela parte, bastando que motive o julgado com as razões que entendeu suficientes à formação do seu convencimento. [...]” (STF, SS 4836 AgR-ED, relator(a): Min. Ricardo Lewandowski (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 07.10.2015, Processo Eletrônico DJe-219, divulg. 03.11.2015, public. 04.11.2015) “[...] Não está o magistrado obrigado a julgar a questão posta a seu exame de acordo com o pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento (art. 131 do CPC), utilizando-se de fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinente ao tema e legislação que entender aplicável ao caso. [...]” (STF, AI 847887 AgR, relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 13.12.2011, Acórdão Eletrônico DJe-034, divulg. 15.02.2012, public. 16.02.2012) “[...] IV – Não há contrariedade ao art. 93, IX, da mesma Carta, quando o acórdão recorrido encontra-se suficientemente fundamentado. V – Não viola a exigência constitucional de motivação a fundamentação de turma recursal que, em conformidade com a Lei nº 9.099/95, adota os fundamentos contidos na sentença recorrida. VI – Agravo regimental improvido.” (STF, AI 749969 AgR, relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 15.09.2009, DJe-191, divulg. 08.10.2009, public. 09.10.2009, ement. VOL-02377-12, PP-02531) “[...] 2. O julgador não está obrigado a refutar expressamente todas as teses aventadas pela defesa, desde que pela motivação apresentada seja possível aferir as razões pelas quais acolheu ou rejeitou as pretensões deduzidas. [...]” (STJ, HC 318.957/SP, rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 03.11.2015, DJe 10.11.2015) A cultura judiciária não é senão um aspecto da cultura da comunidade jurídica. A ideia de centralidade da atuação judicial, ainda que à custa de uma acentuada assimetria dos sujeitos processuais, não influenciou apenas juízes. Como não poderia deixar de ser, o instrumentalismo também estava introjetado em professores, advogados e membros do Ministério Público formados sob as mesmas bases. A imagem do Juiz Hércules de Dworkin, que poderia resolver casos difíceis mediante argumentação principiológica (embora solipsista), adaptou-se perfeitamente a essa concepção de jurisdição, ocupando espaço de relevo no ensino jurídico brasileiro nos anos 90 e 2000. Dworkin rejeitava o ativismo judicial, mas, na transposição de sua doutrina para a realidade brasileira, essa ressalva se perdeu. De sua robusta doutrina parece ter permanecido apenas o ataque geral ao formalismo, a ideia de julgamento com argumentos morais e, claro, a vistosa representação do juiz dotado de superpoderes. Uma grande expectativa sobre a atuação do Poder Judiciário migrou para a sociedade como um todo. Para isso contribuiu, sem dúvida, a baixa credibilidade dos poderes Legislativo e Executivo, aliada ao renovar de esperanças que a Constituição de 1988 instigou. Dos magistrados se esperava "fazer cumprir a Constituição que os políticos não cumpriam". Mas ainda não era tudo: era preciso que isso também ocorresse com celeridade. Juízes tinham que ser práticos, usar linguagem acessível e conferir efetividade à sua atuação. Então as preocupações com a duração dos processos dominaram as avaliações da sociedade sobre o Poder Judiciário. Nesse cenário, concebendo o juiz como um ser racional que reage a incentivos, tal qualquer outra pessoa, de que modo se esperaria que ele agisse em relação a um possível dilema entre usar seu tempo para julgar mais ou fundamentar melhor? Haveria de priorizar a qualidade justificatória, enfrentando a cada vez todos os argumentos das partes, ou a produtividade, a fim de acelerar a prestação jurisdicional? Se puder conciliar a realização de ambos os objetivos, é imperioso que o faça; mas se estiver em uma situação de sobrecarga de trabalho e tiver que escolher uma prioridade? Em casos tais, que não são infrequentes, é mais provável que o juiz opte pelo curso de ação que leve ao resultado mais consentâneo com a expectativa daqueles que avaliam seu trabalho. Em favor da celeridade, pesam ao menos três motivos fortes: as críticas e as cobranças vêm muito mais do lado da duração dos processos que do da qualidade da fundamentação; a produtividade é o principal critério objetivo utilizado para avaliação de desempenho e ascensão na carreira; fundamentações cuidadosas com a argumentação das partes muitas vezes passam despercebidas pelos órgãos de revisão, eles próprios preocupados com a sua própria produtividade e, portanto, levados a usar votos padronizados. Tudo isso, aparentemente, parece falar a favor da tese da inaptidão das prescrições do novo CPC para a otimização do dever de fundamentação das decisões judiciais, já que o problema não seria normativo. Se não forem propiciadas melhores condições de trabalho ao juiz, nem combatido o viés cultural pela celeridade, poderia se cogitar que de nada adiantaria mudar a lei. Vários argumentos, contudo, rechaçam a objeção da inaptidão. Reconhece-se que mudanças culturais não ocorrem de uma hora para outra, mas elas podem começar a ocorrer a partir de um conjunto de alterações que formam um gatilho para a inovação. A própria edição do novo CPC e a ascendência do formalismo-valorativo são elementos que pressionam a transformação cultural dos operadores jurídicos. O entendimento jurisprudencial que dava por cumprido o dever de fundamentar mesmo quando não enfrentadas todas as teses das partes consolidou-se sob um arcabouço jurídico e cultural que não estabelecia, necessariamente, passos de desenvolvimento argumentativo na tarefa de justificação. Não se pode dizer que as disposições do art. 489 já haveriam de ser deduzidas diretamente da Constituição, como se fosse o único modo de conceber o dever de justificação. Considerando os estímulos à litigiosidade, o uso massificado de "modelos" de peças processuais por todos os operadores jurídicos (não só os magistrados) e em todas as instâncias, a cultura de esperar tudo do juiz e a pressão da produtividade, a conformação do dever constitucional de fundamentação pela jurisprudência, tal como consolidado, não pode ser tida como aberrante. Agora, diversamente, existe uma regulação que equipara à inexistência de fundamentação, com a respectiva sanção por nulidade, alguns tipos de deficiência justificatória. A observância do conteúdo mínimo da fundamentação judicial constitui requisito para a validade da prestação jurisdicional. Não há estatística de produtividade que resista ao retrabalho de julgar duas vezes os mesmos casos. A estatuição de passos de articulação para a fundamentação judicial não é pouca coisa, sob o aspecto normativo, mas realmente ainda não diz nada sobre a questão da litigiosidade. O problema da sobrecarga de trabalho, se não enfrentado (em diversas frentes), de fato pode acarretar uma demora insuportável na prestação jurisdicional, ou esvaziar a eficácia das novas exigências para a fundamentação das decisões. Nenhuma das hipóteses é aceitável. Para afastar esses riscos, é preciso conferir efetividade às disposições do novo CPC relativas à racionalização do processamento e do julgamento das ações. Destaca-se, aqui, o estímulo à utilização das ações coletivas (art. 139, X) e à conciliação; a possibilidade de modificação de competência e julgamento conjunto de processos que possam gerar risco de prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles (art. 55, § 3º); a obrigação de os tribunais uniformizarem sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente (art. 926); o dever de juízes e tribunais observarem a jurisprudência e aplicarem precedentes (art. 927); e a utilização adequada do incidente de demandas repetitivas (art. 976). 4 Resposta à tese da intromissão A tese da intromissão sustenta que não é função da lei descer aos pormenores da fundamentação judicial. Para tanto, levanta objeções tanto práticas como metodológicas. A objeção prática baseia-se nas dificuldades que a exigência de uma fundamentação pormenorizada acarretariam ao ato de decidir e à continuidade da marcha processual. Tome-se, a título de exemplo, a proibição de considerar fundamentada uma decisão que "se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou com a questão decidida" (art. 489, § 1º, I), para perguntar: a) Por que cominar de nulidade uma decisão que, embora não justifique a razão de ter aplicado a norma A em vez da norma B (§ 1º, I), tenha solucionado corretamente o caso concreto? b) Faria algum sentido anulá-la para, tempos depois, adotar-se a mesma solução, apenas acrescida da justificação de que, por exemplo, a norma A é especial em relação à norma B?A resposta a essas indagações deve ser desmembrada em partes. Em primeiro lugar, deve ser enfatizado que o novo CPC surge no ocaso da visão instrumentalista, que centralizava toda a bondade ou ruindade da solução do litígio na figura do juiz. Vivemos hoje uma nova etapa metodológica do processo, que se reflete em uma nova concepção dos papéis dos sujeitos processuais. Para o formalismo-valorativo que inspirou o novo código, a solução jurídica é produto de uma comunidade de trabalho formada pelas partes e pelo juiz, de modo que o dever de fundamentar não pode ser corretamente compreendido senão em sua conexão com o princípio da cooperação. O verdadeiro cerne do dever de fundamentar, portanto, diz respeito à exigência de o juiz "enfrentar os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador", conforme dispõe o inciso IV do § 1º do art. 489. Todas as exigências enunciadas nos demais incisos estão subordinadas ao dever de enfrentamento dos argumentos das partes. Não se argumente, contra isso, que não existe hierarquia entre disposições que estão no mesmo plano normativo. Lembre-se, aqui, a diferença entre texto e norma: não se deve sobrevalorizar formulações linguísticas que estão no nível do texto, pois o verdadeiro sentido deve ser buscado no nível da norma. A interpretação coerente do novo CPC impõe que se estruture o dever de fundamentar pela cooperação e, portanto, a necessidade de a argumentação judicial desenvolver-se a partir da argumentação das partes. Firmadas essas bases, é imperioso exigir que as próprias partes fundamentem, em suas manifestações, a indicação da norma ou das normas cuja aplicação justificaria a adoção da providência requerida. A tarefa judicial de apresentar as razões de tal ou qual norma compor uma premissa do seu raciocínio estará vinculada ao debate já existente no processo. Com isso, deve ser entendido que o código não impôs uma sobrecarga epistêmica ao juiz, antes a atenuou, ao partilhá-la com as partes. Se o autor não justifica a invocação de ato normativo que alega incidir no caso, deve o juiz mandá-lo promover a emenda da inicial, sob as penas da lei. Se o réu não justifica por que é aplicável norma diversa da postulada pelo demandante, não poderá alegar nulidade da fundamentação judicial, pois contribuiu para tanto. É verdade que a exigência de um modelo analítico de fundamentação não está expressa nos arts. 319, 321 e 336 do novo CPC, que tratam dos requisitos da petição inicial e da contestação. Trata-se, contudo, de imposição inafastável do princípio cooperativo. A extensão do dever de fundamentação do juiz é medido pelo modo de cumprimento do ônus de fundamentar das partes. Assim como um dia foi abandonada a ideia de que o direito é criação exclusiva do legislador, hoje caiu a ideia de que a aplicação judicial do direito é função exclusiva do juiz. É preciso resgatar Hércules da solidão. Os juízes não são os novos “senhores do direito”, e sim os garantes da complexidade estrutural do direito contemporâneo, caracterizado pela coexistência dúctil entre lei, direitos e justiça (ZAGREBELSKY, p. 153). O direito passa a ser visto como um processo de concreção ou determinação crescente do qual participam vários atores (VIGO), em um ambiente institucional de democracia e participação. Com efeito, não se pode falar em decisão correta sem fundamentação adequada. A pergunta a repousa sob a falácia da correção ontológica: uma solução jurídica não é correta per se; ela será adequada se for adotada mediante a observância da cooperação processual. Isso também responde à pergunta b, mas aqui há algo a acrescentar. A decretação das nulidades segue a principiologia do prejuízo e da lealdade, de modo que a constatação da irregularidade não necessariamente precisa levar, em todos os casos, à decretação da sanção. De qualquer modo, convém repisar aqui o truísmo de que o juiz, assim como os demais operadores jurídicos, são seres racionais que reagem a incentivos. Uma jurisprudência demasiadamente frouxa na aplicação da pena de nulidade pode subtrair parte da eficácia esperada da norma que impõe o conteúdo mínimo da fundamentação judicial. A tese da intromissão também pode ser articulada sob argumentos de metodologia jurídica. Lenio Streck, por exemplo, ataca com virulência o § 2º do art. 489, que dispõe sobre a estrutura da fundamentação em caso de colisão de normas. O autor sustenta que o novo CPC desloca apressadamente o âmbito da discussão de uma tese (tão complexa como controversa) para o direito positivo, consagrando uma vulgata da ponderação de Robert Alexy, que tenderá a propiciar aos juízes um artifício para exercitar uma livre escolha. Streck rejeita a possibilidade de ponderação de regras, alerta para a ambiguidade e falta de clareza do conceito de ponderação e diz que o dever de enunciação das "premissas fáticas que fundamentam a conclusão" faz com que a fundamentação perca seu caráter estruturante, servindo como mero "ornamento póstumo" à decisão (STRECK, 2015, p. 134-136). A questão da nomenclatura não deveria ser sobrevalorizada. De fato, são poucos os autores que admitem a existência de colisão de regras e, consequentemente, a possibilidade de que ela seja resolvida por ponderação. Um deles é Humberto D’Ávila (2004), que participou da elaboração do anteprojeto. É apressada, contudo, a interpretação de que as expressões empregadas implicam uma tomada de posição do legislador sobre se regras são passíveis de colisão. O próprio Streck sustenta que norma é o gênero de que princípio e regra são espécies. A utilização da formulação mais ampla não torna errada a conclusão de que pode haver colisão de princípios, e, sendo os princípios normas, pode haver colisão de normas. Não há maiores dificuldades de justificar a interpretação restritiva. Sobre o debate relativo à ponderação, parece que a opção do novo CPC foi, inversamente ao que defende Streck, fugir de polêmicas conceituais. Embora o jurista esteja correto em criticar o mau uso da proporcionalidade no meio jurídico brasileiro, parece-me que sua defesa da ausência de constrangimentos institucionais para vincular o juiz à racionalidade argumentativa só agrava o problema. Para Robert Alexy, a ponderação funciona como um roteiro metodológico para testar as soluções cogitadas. Trata-se, portanto, não de um modelo de decisão, e sim de um modelo de justificação (ALEXY, 2007). O novo CPC não o impõe, apenas diz que "o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão". Na redação do dispositivo, ponderação é usada como sinônimo de decisão, e não como o iter justificatório, mas isso não o torna completamente inútil. É correto extrair de seu confuso texto, ao menos, a existência de um dever geral de contraposição de razões e contrarrazões. É pouco, mas ainda é muito melhor que o vazio normativo sugerido por Streck. Sobre o argumento de perda do caráter estruturante da fundamentação, Streck ignora ou rejeita a diferença entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Suas frequentes citações de Gadamer parecem pôr na doutrina do filósofo uma repulsa cabal a qualquer filtro de racionalidade na interpretação jurídica. A interpretação não ocorre em um momento mágico, em que o sujeito adota a decisão ao mesmo tempo em que já sai pronta de sua cabeça uma "fundamentação autêntica" em todos os seus detalhes. Parece haver uma contradição ao defender e elogiar o § 1º, a ponto de dizer que sem ele o novo CPC desaparece, ficando pior que revogado (STRECK, 2015, p. 139), e ao mesmo tempo condenar o § 2º, chamando-o de mero despiste do decisionismo (idem, p. 141). Se a virada hermenêutica significa tudo o que Streck diz, faltou ao autor justificar o que salva o inciso IV do § 1º, que obriga o juiz a "enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador", da sua indagação sobre "como é possível que eu atravesse o 'abismo gnosiológico do conhecimento' para, chegando do outro lado (conclusão), voltar-para-construir-a-ponte-pela-qual-acabei-de-cruzar" (2015, p. 136). O círculo hermenêutico, bem compreendido, significa o vaivém do olhar também em relação à decisão cogitada e à aceitabilidade de sua adoção. A importância do dever de fundamentação consiste justamente em estimular que o intérprete faça as razões retroagirem ao momento da adoção da decisão. Com isso se pode aproximar descoberta e justificação, sem negar a distinção entre os dois contextos. O controle do discurso do juiz, no marco da racionalidade legal, não é apenas um controle de procedência externa, senão que também se projeta em face do próprio juiz, comprometendo-o a não aceitar acriticamente as “perigosas sugestões da certeza subjetiva” (IBAÑEZ, 2006, p. 107). A imposição de passos de desenvolvimento da fundamentação, por vincular o julgador a um teste de correção, constitui um freio à contaminação da decisão judicial por fatores irracionais. Sem eles, aí sim, e a prática até aqui o comprova, é muito mais provável que a fundamentação seja o mero "ornamento póstumo" para o decisionismo. Conclusão A legitimidade da jurisdição não deve ser buscada na conduta pessoal privada do juiz, e sim no caráter racional e fundamentado do exercício da atividade judicial. A adequada realização do dever de fundamentação é, portanto, indispensável para o bom funcionamento das instituições. Referências ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. |
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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