Ampliar a colegialidade: a que custo?

Teresa Arruda Alvim

Advogada, Livre-Docente e Doutora em Direito pela PUC-SP, Professora na PUC-SP, Professora Visitante na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e na Universidade de Lisboa, Diretora de Relações Internacionais do IBDP, Coordenadora da Revista de Processo

publicado em 27.04.2017

Sumário: Introdução. 1 Razões para a adoção da nova técnica. 2 Natureza jurídica. 3 Hipóteses de aplicação da técnica. 4 Problemas de procedimento. 5 Vício da decisão proferida sem que a técnica tenha sido usada. 6 Sustentação oral. Reflexões de caráter conclusivo.

Introdução

Todas as comissões pelas quais passou o projeto para um novo CPC estavam de acordo quanto à impossibilidade de redução drástica do número de recursos disponíveis. Desapareceu o agravo retido, mas isso ocorreu porque esse recurso se tornou desnecessário, já que foi alterado o regime das preclusões.

Desapareceram os embargos infringentes, mas, na fase mais do que final da tramitação do projeto no Poder Executivo, introduziu-se no CPC esta figura, a meu ver, bizarra: ampliação da colegialidade, cujo nome sugere que o uso desse instituto pode gerar uma decisão aprimorada. Na verdade, ao que parece, o instituto tem gerado mais problemas do que propriamente o aprimoramento das decisões dos tribunais.

De fato, uma das poucas ousadias que teve o legislador do NCPC, no plano recursal, foi a de extinguir os embargos infringentes. A última configuração da hipótese de incidência desse recurso dava margem a muita discussão, já que não se sabia ao certo o que seria “reformar” a decisão de primeira instância.

Isso acabou por acarretar a existência de concepções diferentes a respeito da configuração das hipóteses de cabimento dos antigos e extintos embargos infringentes. Essas discussões se refletiam na jurisprudência e geravam problemas quanto à admissibilidade dos recursos para os Tribunais Superiores, já que todas as instâncias ordinárias deveriam (e devem) ter sido percorridas para que o recurso fosse admitido: não há recurso per saltum no direito brasileiro.

Entretanto, a supressão desse recurso gerou muita resistência da comunidade jurídica. Por isso é que, no último minuto da prorrogação que se deu ao segundo tempo, foi incluída, no NCPC, esta figura, que vem sendo chamada pela doutrina de técnica de julgamento que envolve ampliação da colegialidade.

Essa técnica “inibe o encerramento do julgamento e implica a continuidade do reexame da matéria independentemente da vontade da parte e, por isso, elimina o manejo de meio de impugnação para tentar reverter o resultado da decisão”.(1)

1 Razões para a adoção da nova técnica

Sobre uma das finalidades do novo instituto, raramente mencionadas pela doutrina produzida à luz do NCPC, afirma José Maria Câmara:

“A técnica amplia o quórum de julgadores para assegurar a possibilidade de inversão do resultado inicial e, por isso, tem a finalidade de propiciar a prevalência do voto minoritário, que poderá não ser mais apenas uma dissidência ou posição isolada no órgão colegiado, mas sim um posicionamento que se forma a partir da discussão sobre o tema por um maior número de julgadores. A norma quer mais. Identifica-se o propósito de buscar uniformidade no órgão colegiado, o que implica maior segurança jurídica e previsibilidade para o controle jurisdicional.

(...)

De toda sorte, a novidade contribui para exaurir ou mitigar a divergência entre os julgadores, consolidando a posição da maioria a partir de um procedimento simplificado e célere. Como se vê, o art. 942 não quer apenas permitir a inversão do resutado do julgamento não unânime, mas também pretende atingir uma maior uniformidade de entendimento no órgão colegiado, dissipando dúvidas e divergências internas, e, com isso, emprestar maior segurança jurídica e previsibilidade para ao controle jurisdicional.”(2)

No entanto, a principal “crença” que está por trás da introdução desse instituto no novo CPC é a de que a ampliação da colegialidade levaria necessariamente ao aprimoramento da decisão.

Juristas, em geral, têm a tendência de se fechar em uma torre a alguns metros do solo e parecem acreditar que o direito pode produzir resultados úteis para a sociedade se for concebido e se a respeito dele se refletir sem referência ao mundo real e sem recurso a outras ciências.

Há autores brasileiros que afirmam em tom categorico que esse aprimoramento é fruto inexorável da colegiliadade, como v.g. Pontes de Miranda,(3) Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Dinamarco,(4) José Miguel Garcia Medina,(5) Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Arenhart.(6) Mas nada há de óbvio nessa afirmação.

Trabalho interessante de Jordão Violin(7) nos relata resultados de um estudo disciplinar realizado na Universidade de Chicago:

“Estudo interdisciplinar conduzido por David Schkade, Cass R. Sunstein e Daniel Kahneman na Universidade de Chicago analisou mais de 500 julgamentos colegiados sobre responsabilidade civil. Todos os casos diziam respeito à quantificação de valores reparatórios (compensatory damages) e punitivos (punitive damages). A conclusão a que se chegou é que, em comparação com os julgamentos individuais, as decisões colegiadas são significativa e sistematicamente mais imprevisíveis e mais variáveis. A imprevisibilidade decorre do fato de o reconhecimento do dever de indenizar ser mais errático em decisões deliberadas. Já a variabilidade decorre do fato de os júris quantificarem em valores maiores as grandes indenizações e em valores menores as pequenas indenizações.(8)

Esse resultado pode ser compreendido a partir da chamada polarização de grupo (group polarization). De acordo com esse fenômeno, decisões coletivas tendem a ser uma versão extremada das opiniões individuais de seus membros. A polarização acontece quando uma tendência inicial dos membros do grupo é potencializada pela deliberação conjunta.(9) Consequentemente, a decisão coletiva costuma ser mais radical se comparada à decisão que um dos membros do grupo tomaria individualmente. Um grupo formado por feministas moderadas, por exemplo, tende a se tornar mais inflexível após debater entre si. O mesmo acontece com um grupo formado por brancos predispostos a adotar comportamentos racistas. Após deliberação, o grupo se mostra mais propenso a defender seu ponto de vista, negando que o racismo, em si mesmo, seja um problema social.(10)

Note-se que a polarização não está calcada na irracionalidade ou no apelo às emoções dos julgadores. Ao contrário, trata-se de um fato cuja ocorrência requer argumentação persuasiva. A radicalização é racionalmente empreendida pelo membro do grupo. Daí a força e a coesão que aquele entendimento alcança, mesmo diante de evidências contrárias.(11)

Não é difícil associar esse fenômeno a comportamentos incompreensivelmente típicos dos tribunais brasileiros, como a jurisprudência defensiva. Como explicar que, mesmo diante de um consenso generalizado em torno da necessidade de efetividade do processo, de acesso à justiça e do desapego ao formalismo, os tribunais continuem criando requisitos formais não previstos em lei para a apreciação de recursos? E, pior, como compreender a imediata negativa de seguimento a recursos que não observam esses requisitos, sem sequer se oportunizar a convalidação do vício? Como explicar, ainda, os inúmeros enunciados normativos afirmando a inaplicabilidade de normas do CPC que priorizam o julgamento de mérito?

(...)

Embora a polarização de grupo seja um fenômeno bastante conhecido e estudado na psicologia social, ele não é mais que um ruído nas ciências jurídicas – especialmente no processo civil.(12) Essa omissão é injustificável diante da sua influência em órgãos deliberativos. Qualquer defesa do julgamento colegiado deve estar ciente da possibilidade de o resultado ser polarizado.

Ao lado da polarização de grupo, ainda outro fenômeno permite questionar as vantagens de julgamentos colegiados: a aversão ao dissenso. Ela ocorre quando um julgador, mesmo discordando de seus pares, prefere endossar a decisão majoritária a manifestar sua opinião individual. Assim, aquilo que seria um julgamento por maioria acaba se tornando uma (falsa) decisão unânime. Não por haver consenso, mas porque os custos do dissenso superam as vantagens.”

Portanto, percebe-se que a colegialidade, sozinha, nada garante. Até porque são, infelizmente, muito comuns casos de julgamentos colegiados em que todos, pura e simplesmente, acompanham o relator, casos esses em que se revela de modo evidente alto grau de aversão ao dissenso.

Ao se estabelecer a necessidade de que o julgamento seja colegiado, e ao se ampliar essa colegialidade, desde que presentes certos pressupostos, como fez o CPC de 2015, dever-se-iam ter sopesado prós e contras. Os “contras” quase que se polarizam todos em torno da incompatibilidade dessa exigência com a necessidade de celeridade dos julgamentos. A nosso ver, a criação desse instituto talvez não tenha levado em conta os “contras”, pois que, no contexto brasileiro, se confundem com o volume desumano de trabalho dos tribunais. Se as vantagens não são certas, ampliar a colegialidade em julgamentos já colegiados talvez não tenha sido uma boa solução. Serviu apenas para gerar conforto no jurisdicionado, em virtude de uma “crença” arraigada na nossa doutrina.

2 Natureza jurídica


É necessário que se diga não se tratar de recurso. Ao contrário, há menos razões para se imaginar que se trataria de um recurso do que quando se pensa a respeito do mesmo problema relativamente à remessa necessária.

Na remessa necessária, não há iniciativa da parte. Entretanto, já há decisão. Eis um ponto que aproxima a remessa necessária do regime jurídico dos recursos.

No caso da ampliação da colegialidade, além de não haver iniciativa da parte, não há nem mesmo decisão. Isso, apesar da redação desajeitada do art. 942, caput,(13) é uma técnica que se aplica quando o julgamento está em curso, ou seja, quando não há, senão, um “resultado” parcial. Na remessa necessária, ao contrário, já há uma decisão. Não se pode, por esta e por outras razões, portanto, qualificar essa figura como um “tipo” de recurso.

Se isso não bastasse, há o princípio da taxatividade.

Segundo esse princípio, se sabe, só há os recursos que a lei prevê. Não se podem interpretar as regras que criam recursos de forma extensiva ou analógica. A previsão é numerus clausus: não há recursos se não aqueles a que a lei qualifica como tal.

Por último, uma observação: a técnica de julgamento que envolve ampliação de colegialidade provoca a alteração da competência funcional e, por isso, não pode ser objeto de negócio jurídico processual.

3 Hipóteses de aplicação da técnica

E essa figura, ainda, é cheia de estranhezas: para que seja aplicada a tal técnica na apelação, não se exige que tenha havido reforma da sentença, nem que a sentença seja de mérito. Basta que haja falta de unanimidade: qualitativa ou quantitativa.

Entretanto, se se tratar de agravo, interposto de decisão interlocutória de mérito, a coisa muda. Deve ter reformado a decisão impugnada, assim como ocorre quando se tratar de ação rescisória.

Qual a razão dessa diferença de tratamento? Seria constitucional, principalmente quando se pensa na apelação e no agravo interposto de decisão interlocutória de mérito, que são recursos “equivalentes”?

A discussão que se pretendia apagar do mundo jurídico, com a entrada em vigor do CPC de 2015 e com o desaparecimento dos embargos infringentes, relativa ao que seria “reformar” a decisão, acabou por permanecer viva, já que a reforma da decisão é requisito para a aplicação de técnica no caso do agravo contra decisão interlocutória de mérito e da ação rescisória.

Só para relembrar: se o juiz julga a ação procedente e condena o réu a pagar cem reais, e o Tribunal, mantendo a procedência, condena o réu a pagar cem mil reais, teria sido a sentença reformada? E se o tribunal, alterando sentença que julga improcedente o pedido, extingue o processo sem julgamento de mérito? Terá reformado a sentença, para efeito de incidência da técnica da ampliação da colegialidade?

Por outro lado, no sistema recursal do NCPC, cabe apelação contra decisões interlocutórias de que não cabe agravo de instrumento. O legislador diz que essas interlocutórias são impugnáveis por apelação e não condiciona expressamente a que haja impugnação também do mérito. Afinal, mesmo aquele que se sagrou vencedor pode ter interesse em se voltar contra uma interlocutória que lhe tenha, por exemplo, fixado uma multa por litigância de má-fé. Temos sustentado, pelo que dissemos, que há interesse no manejo da apelação apenas para a impugnação desta interlocutória. O prejudicado não pode ter que ficar à mercê da vontade de a outra parte apelar para, só então, contra-arrazoar e impugnar, nessas contrarrazões, a interlocutória que o prejudicou.

É mais comum, evidentemente, que quem apele tenha sido, antes, prejudicado por interlocutórias... mas pode, excepcionalmente, não ser essa a hipótese, como ocorre no exemplo acima e em outros casos.

Referidas interlocutórias, de que não caiba agravo de instrumento, podem ser impugnadas na apelação, junto com o mérito, ou independentemente de impugnação deste, assim como nas contrarrazões.

E se a falta de unanimidade ocorrer nesse plano? Ressuscitada está a polêmica, que também se pretendia enterrar com o desaparecimento dos embargos infringentes, sobre se embargos infringentes seriam, ou não, cabíveis na hipótese da falta de unanimidade (ocorrer) no âmbito do extinto agravo retido...

4 Problemas de procedimento

Problemas instigantes ocorrem no que diz respeito a) à manutenção do quorum ampliado para as questões logicamente subsequentes àquela que gerou a necessidade de ampliação; e b) à possibilidade de os novos desembargadores se manifestarem sobre a questão anterior, sobre a qual não tenha havido divergência.

Vejam-se ambas as hipóteses, agora de forma analítica: (a) vota-se por maioria quanto à existência de prescrição, ampliando-se, consequentemente, o quorum. Por unanimidade, decide-se que não há prescrição. A ampliação deve permanecer para julgar-se o mérito propriamente dito? (b) há unanimidade quanto à inexistência de prescrição. Quanto ao mérito, propriamente dito, há maioria, e, portanto, altera-se o quorum, ampliando-o. Poderão os novos desembargadores votar quanto à prescrição?

Ou seja, sendo unânime a decisão sobre a inexistência da prescrição, surgindo a divergência apenas relativamente ao mérito propriamente dito, devem os desembargadores chamados para decidir a lide votar também relativamente à prescrição?

A resposta, a nosso ver, é negativa.

Se o instituto foi concebido para simplificar, o resultado da sua aplicação não pode gerar mais ônus temporais para as partes do que geravam os extintos embargos infringentes.

Quanto à outra questão: amplia-se o quorum para decidir a prescrição e se conclui no sentido de que esta não ocorreu. Para decidir o mérito (rectius – a outra parte do mérito), deve-se conservar a ampliação da colegialidade? Ou seja, preserva-se a ampliação a que antes se procedeu, para julgar a questão subseqüente, sobre a qual não há desacordo?

A nós, parece certa a orientação de se prosseguir no julgamento até o final, com o órgão jurisdicional ampliado.

O art. 942 diz que, instalada essa ampliação, os que já tiverem votado poderão rever seus votos... (exclusivamente com relação à questão que ensejou a ampliação da colegialidade) sim, mas não porque terá havido essa ampliação: pura e simplesmente porque o julgamento não terminou! Essa nada mais é do que a regra geral, que a redação da lei faz crer que seria excepcional.

É que o procedimento criado para julgar seu recurso ou a ação rescisória quando há ampliação da colegialidade deve ser concebido como sendo um procedimento por fases.

A ideia de julgamento por fases é indissociável deste instituto, sob pena de este se transformar em calcanhar de Aquiles dos Tribunais!

Devem-se necessariamente enxergar essas fases no procedimento iniciado pela ampliação de colegialidade, fases estas que, se superadas, impedem que se volte atrás.

Também pensa assim José Maria Câmara:

“Sempre que ocorrer a aplicação da técnica de colegiamento prevista no art. 942 o julgamento passa a encerrar um ato processual que reúne duas etapas. A primeira em que se deu a decisão não unânime e a outra fase com a decisão do órgão colegiado ampliado. A unicidade do ato processual considera o julgamento, que prossegue na mesma sessão ou em outra a ser designada, se houver a convocação de julgadores não presentes na primeira sessão em que se deu a decisão por maioria.”(14) (destaques nossos)

É importante se ter presente que as respostas a todas essas perguntas certamente não serão encontradas nos livros de autores consagrados, como, por exemplo o clássico de Barbosa Moreira. Não se pode perder de vista que autores como o antes mencionado escreveram de forma quase exauriente sobre recursos, mas ainda à luz do direito posto à época. Então, quando disseram que os desembargadores podem alterar seus votos até que o presidente do órgão anuncie o julgamento,(15) não se referiam a este instituto, que, no momento em que escreveram, não existia, nem à possibilidade de que os desembargadores que passaram a integrar o quorum porque quanto ao mérito houve julgamento por maioria possam manifestar-se quanto à prescrição, que foi decidida (3x0) por unanimidade.

5 Vício da decisão proferida sem que a técnica tenha sido usada

Qual a natureza do vício de que padece a decisão proferida sem o quorum aumentado?

Não realizada a técnica quando teria sido o caso de esta ser aplicada, não cabe o recurso especial? Este instituto tem algo a ver com o requisito do “esgotamento das instâncias ordinárias”?

A situação que se cria não é idêntica à de não se terem esgotado todas as instâncias, e a responsabilidade pela iniciativa do uso do instituto não é do recorrente. Mas será a primeira ilegalidade a ser apontada no recurso especial, com função de questão preliminar, como acontece com os embargos de declaração e acontecia com os embargos infringentes.

Como fica a situação do recurso extraordinário? Se cabem recurso especial e recurso extraordinário da decisão de 2º grau, ambos devem ser interpostos no mesmo prazo, e o extraordinário deve ter seu procedimento sobrestado até que se julgue o recurso especial e seja decidida a questão sobre a necessidade (ou desnecessidade) de aplicação do instituto no caso concreto.

Em nosso entender, é de nulidade o vício de que padece a decisão proferida sem o emprego da técnica de ampliação de colegialidade nas hipóteses em que essa técnica era necessária.

Nesse sentido também José Maria Câmara Jr.:

“No ambiente acadêmico, alguns acenam para a ineficácia do julgamento, considerando, para tanto, que o descumprimento do art. 942 assemelha-se à situação em que não houve a remessa necessária, atribuindo-lhe a mesma consequência, ou seja, a não formação da coisa julgada.

A solução não parece ser a mais adequada, porquanto, para nós, o problema se resolve no plano do sistema das nulidades.

(...)

Sem representar propriamente um recurso, o mecanismo previsto no art. 496 do Código de Processo Civil confere validade e eficácia para o provimento judicial ao atribuir efeito devolutivo, permitindo o reexame da matéria, e também o efeito translativo ao possibilitar a cognição ‘ex officio’ em relação à matéria de ordem pública, que reúne caráter cogente e grau de imperatividade para determinar a aplicação da norma.

Nesse sentido, o art. 496 do novo CPC reproduz o antigo art. 475 do CPC/73 e, com isso, alberga o enunciado da Súmula 423 do STF que obsta o trânsito em julgado da sentença ‘por haver omitido o recurso ex officio’.

O art. 496 estabelece que a sentença proferida contra o interesse da Fazenda deve se sujeitar ao duplo grau e ‘não produzirá efeito senão depois de confirmada pelo tribunal’. Diante da expressa advertência prescrita pela norma, percebe-se o acentuado grau de imperatividade. Sem a remessa obrigatória, a decisão é ineficaz e não produz coisa julgada.

De outra banda, a técnica do art. 942 versa sobre situação diversa, com contornos específicos que gravitam em torno dos elementos de composição do ato processual, que é o julgamento.

(...)

Nesse sentido, já há precedente considerando possível corrigir o vício relativo à técnica de julgamento, anunciando a sua não aplicação e decretando a nulidade da decisão (TRF3, 4ª Turma, AC 00003007520114036104, Desembargador Federal André Nabarrete, e-DJF3 Judicial 1, DATA: 07.10.2016).”(16)

6 Sustentação oral

O NCPC assegura às partes e aos terceiros o direito de fazer sustentação oral, caso haja a ampliação da colegialidade. Na verdade, o Código proporciona a possibilidade de que a parte sustente novamente, se, eventualmente, já tinha sustentado antes de surgir o dissenso entre os desembargadores.

O que faz nascer esse direito é o surgimento do dissenso. Nesse momento, nasce o direito à sustentação oral, que deve ser feita ali, na própria sessão, se convocados para ampliar a colegialidade desembargadores integrantes do órgão que já estejam presentes. Se o julgamento não terminar e houver designação de data para julgamento, com os mesmos desembargadores, a parte não poderá, só então, sustentar.

No entanto, se os novos desembargadores não estavam presentes na sessão em que houve o dissenso, e houver designação de outro dia para que o julgamento se dê perante o quorum aumentado, aí sim poderá a parte sustentar oralmente na outra sessão.(17)

Mas o problema mais sério criado pela lei é relativo ao agravo de instrumento. O art. 937, VIII, do NCPC diz que sustentação oral em agravo de instrumento pode ter lugar exclusivamente no caso de a decisão recorrida dizer respeito à tutela provisória.

Ora, como conciliar o que se disse com a previsão do art. 942, caput, que assegura o direito à sustentação oral, e o art. 942, § 3º, II, que faz alusão ao agravo de decisão que julga parcialmente o mérito, como hipótese em que se deve aplicar a técnica da ampliação da colegialidade?

Salta aos olhos o absurdo da conclusão no sentido de que, no julgamento normal do agravo de instrumento contra decisão parcial de mérito, não há sustentação oral, mas poderia haver caso acontecesse a ampliação da colegialidade.

Em nosso sentir, o legislador errou ao não conferir às partes o direito de sustentar oralmente no agravo de instrumento interposto contra decisão parcial de mérito. E acertou ao prever a possibilidade de sustentação no momento da ampliação da colegialidade. Portanto, ao que nos parece, é aquele erro que deve ser corrigido, à luz da pressão do art. 942, § 3º, II. Já que os dois dispositivos são desarmônicos, deve-se corrigir a desarmonia a partir do dispositivo em que o legislador acertou. Isso porque o agravo intertemporal de decisão parcial de mérito é, em tudo e por tudo, equivalente à apelação.

Reflexões de caráter conclusivo

A nosso ver, a inclusão dessa técnica de julgamento, que consiste na ampliação da colegialidade, não foi uma boa ideia. Isso porque, como se viu, tem gerado muitos problemas na prática, o que deveria ter sido evitado pelo legislador. Da exposição de motivos, consta a intenção da comissão originária, no sentido de simplificar o processo, evitando, assim, que este seja a principal preocupação do juiz: fonte de polêmicas, de grandes discussões! Mas não foi o que prevaleceu, em muitos pontos, na versão final do NCPC.

Esse instituto é fruto da crença no sentido de que uma decisão colegiada é necessariamente “melhor” do que uma decisão monocrática. Procurou-se demonstrar, ao longo do texto, que isso nem sempre é verdade. Mesmo os mais distraídos conseguem perceber que inúmeros julgamentos dos nossos tribunais não são senão aparentemente resultado de colegialidade. Além dessa causa, a aversão ao dissenso, há outras que justificam a necessidade de ponderação entre prós e contras, que deveria ter havido antes de se criar um instituto que aumenta a colegialidade que antes já existia, como o do art. 942, apesar da potencialidade que tinha o instituto de gerar problemas na prática.

Notas:


1. José Maria Câmara Jr., Comentários do NCPC, no prelo, será publicado em periódico do programa de atualização desenvolvido pelo Secad (Sistema de Educação Continuada a Distância) em parceria com o IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual), sob coordenação do Prof. Cassio Scarpinella Bueno e editado pela Artmed Panamericana Ltda.

2. José Maria Câmara Jr., Comentários do NCPC, no prelo.

3. PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1975. Tomo VII. p. 11.

4. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 81.

5. MEDINA, José Miguel Garcia. Direito Processual Civil Moderno. São Paulo: RT, 2015. p. 1.164-5.

6. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. v. 2.

7. VIOLIN, Jordão. Onde está a segurança jurídica? Colegialidade, polarização de grupo e integridade nos tribunais. RePro, no prelo.

8. SUNSTEIN, Cass R; HASTIE, Reid; PAYNE, John W.; SCHKADE, David; VISCUSI, W. Kip. Punitive damages: how juries decide. Chicago: University of Chicago Press, 2008. Por fidelidade ao método, deve-se advertir que o estudo focou na decisão de um tipo específico de órgão colegiado, qual seja, o júri – que, no sistema norte-americano, pode exercer competência civil. Embora júris não sejam formados por magistrados de carreira, cremos que o estudo em questão pode ser utilizado para expor um ponto absolutamente ignorado pela doutrina brasileira: a possibilidade de desvios cognitivos em decisões colegiadas.

9. “[W]hen like-minded people deliberate as an organized group, the general opinion shifts toward extreme versions of their common beliefs.” BAUERLEIN, Mark. Liberal groupthink is anti-intellectual.The chronicle of higher education, Washington, p. 86, 12 nov. 2004.

10. SUNSTEIN, Cass R; HASTIE, Reid; PAYNE, John W.; SCHKADE, David; VISCUSI, W. Kip. Punitive damages: how juries decide. Chicago: University of Chicago Press, 2008. p. 57-8. Para uma análise antropológica da polarização de grupo e de como esse fenômeno, em grandes multidões, pode levar ao comportamento de manada, v. GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo: a revelação destruidora do mecanismo vitimário.São Paulo: Paz e Terra, 2008.

11. BURNSTEIN, E.; VINOKUR, A. Persuasive argumentation and social comparison as determinants of attitude polarization. Journal of experimental social psychology, v. 13, n. 4, p. 315-32, 1977.

12. É possível encontrar relevantes estudos sobre group polarization em júris criminais. Sobre o tema, v. MYERS, D.G.; KAPLAN, M.F. Group-induced polarization in simulated juries. Personality and social psychology bulletin, v. 2, p. 63-6, 1976; KERR, N.L. et al. Guilt beyond a reasonable doubt – effects of concept definition and assigned decision rule on the judgments of mock jurors. Journal of personality and social psychology, p. 282-94, 1976; BRAY, R.M.; NOBLE, A.M. Authoritarianism and decisions of mock juries – evidence of jury bias and group polarization. Journal of personality and social psychology, v. 36, n. 12, p. 1.424-30, 1978; KRAUSS, Daniel A. Psychology, Crime and Law. In: ______; LIEBERMAN, Joel D. (edit.). Jury Psychology: social aspects of trial processes. v. I. Abingdon, GB: Routledge, 2016. p. 75. Quanto ao estudo desse fenômeno na psicologia social, v. OLUSANYA, Olaoluwa. Emotions, decision-making and mass atrocities: through the lens of the macro-micro integrated theoretical model. Farnham, GB: Routledge, 2016. p. 99 e seguintes, em que se narra a descoberta da polarização e as diferentes abordagens desse fenômeno.

13. O dispositivo ora analisado alude ao resultado da apelação, referindo-se a um momento em que o julgamento ainda não terminou, em que, portanto, de rigor, não há resultado.

14. José Maria Câmara Jr., Comentários do NCPC, no prelo.

15. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. V, passim.

16. José Maria Câmara Jr., Comentários do NCPC, no prelo.

17. José Maria Câmara Jr., Comentários do NCPC, no prelo.




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., abr. 2017. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS