Introdução
A responsabilidade do Estado por dano tributário é um tema pouco explorado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência brasileira, embora diversos países, a exemplo da Itália, já o tenham estudado cientificamente, com suporte empírico. Isso se deve sobretudo ao pequeno volume de ações judiciais propostas pelos contribuintes com o escopo de requerer a condenação do ente público ao ressarcimento dos danos causados no exercício da função fiscal, permitindo a discussão da matéria de forma mais aprofundada e com base em casos concretos.
Tal circunstância não revela que tais prejuízos dificilmente ocorrem no Brasil, pois a função fiscal é sempre desenvolvida conforme os princípios jurídicos que regulam o poder de tributar, especialmente o de legalidade. Indica que, apesar da sua insatisfação, o contribuinte sente-se desconfortável em discutir judicialmente as ilegalidades praticadas por agentes do Fisco, dada a preocupação com futuras represálias.
Diante desse cenário, verificou-se a necessidade de aprofundar os estudos a respeito dessa temática, até mesmo para que o Brasil permanecesse alinhado com diversos outros países no que tange aos avanços das pesquisas relacionadas à defesa dos direitos dos contribuintes nas relações tributárias, do que resultou a tese de doutorado “Responsabilidade do Estado por dano tributário”, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) em 17 de março de 2017, após um período de pesquisa na Università degli Studi La Sapienza di Roma pelo Programa Capes.
Tal estudo foi desenvolvido com base no método comparatístico, além dos métodos dedutivo e indutivo, adotando-se como paradigma para a construção normativa doméstica sobre o tema as normas do Direito italiano interpretadas pela Corte de Cassação italiana ao proferir o Acórdão nº 722, de 15 de outubro de 1999, que foi considerado o marco da responsabilidade do Estado por dano tributário nesse país, e os Acórdãos nº 698, de 19 de janeiro de 2010, nº 5.120, de 3 de março de 2011, e nº 6.283, de 20 de abril de 2012, que assinalam a evolução do entendimento da Corte Suprema em relação aos danos resultantes da omissão da administração tributária em anular atos ilegítimos no exercício da autotutela, os quais serão analisados neste artigo em razão da estreita correlação com a decisão proferida pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no julgamento da Apelação Cível nº 5003256-87.2015.4.04.7210/SC, que aproximou ainda mais o Direito brasileiro do Direito italiano.
Esse recente acórdão do TRF4 revela um avanço no tratamento da matéria no Brasil, pois, por meio dele, reconheceu-se o dever da União de ressarcir o dano causado ao contribuinte em razão de uma conduta omissiva do Fisco. Isso porque, na maior parte das ações judiciais em trâmite nos tribunais brasileiros, o nexo de causalidade se estabelece entre o dano e a atividade primária do agente público, isto é, com a emissão do lançamento, e não com a sucessiva omissão na anulação do ato tributário ilegítimo, que somente será a causa do dano se a atividade primária for realizada sem qualquer negligência, com base nas declarações prestadas pelo contribuinte e em sua situação jurídica no momento da lavratura do ato, porém ocorrer alteração posterior que, a despeito de ser informada por ele, é desprezada pelo Fisco, caracterizando a omissão culposa.
1 TRF4, Quarta Turma, Apelação Cível nº 5003256-87.2015.4.04.7210/SC
Em 07 de junho de 2017, a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) negou provimento ao recurso de apelação interposto pela Fazenda Nacional, mantendo a sentença que condenou a União a pagar o valor de R$ 20.000,00 a título de indenização por danos morais ao contribuinte devido ao ajuizamento de execução fiscal que lhe ocasionou transtornos vislumbrados no espanto ao receber a citação em processo judicial, na necessidade de contratar advogado para efetuar sua defesa, na penhora de seu único veículo e na inscrição de seu nome no Cadin, causando um sentimento de profunda tristeza e o comprometimento de sua imagem.
Segundo informações constantes no processo, a União ajuizou execução fiscal em 2005 na Comarca de Camboriú (SC) em face do contribuinte para cobrança de débito tributário relativo ao imposto sobre a renda de pessoa física (IRPF), devidamente inscrito em dívida ativa, referente aos exercícios financeiros 2001/2002, 2002/2003 e 2003/2004.(1)
Entretanto, em 2006, foi expedido um memorando pela Receita Federal dirigido ao Chefe do Serviço de Dívida Ativa da Procuradoria da Fazenda Nacional para informar sobre o cancelamento da DIRPF e do respectivo débito tributário, dada a apresentação da declaração de não reconhecimento de DIRPF pelo contribuinte, no fim de 2005, comunicando a falsificação de seus documentos por terceira pessoa e comprovando não ser o autor da declaração apresentada.
Constata-se que a União reconheceu que a dívida exigida era indevida, pois efetuou o cancelamento administrativo da DIRPF do exercício financeiro 2002, ano-calendário 2001. Todavia, a autoridade fiscal e a Procuradoria da Fazenda Nacional deixaram de efetuar qualquer verificação acerca das DIRPFs dos anos 2002/2003 e 2003/2004, que continuaram a ser cobradas mediante processo executivo, apesar dos fortes indícios de falsidade já constatados, ensejando a inscrição do contribuinte no Cadin e a sua citação sete anos após o reconhecimento da fraude e a comunicação do cancelamento da DIRPF de 2002 pela própria Receita Federal.
Entendeu-se que, no momento da propositura da execução fiscal, o contribuinte não havia protocolado a declaração de não reconhecimento da DIRPF, por isso o ato de ajuizamento não poderia ser considerado ilícito. Contudo, constatada a fraude na DIRPF apresentada em seu nome, referente aos exercícios 2001/2002, competia ao ente público realizar um levantamento acerca das demais DIRPFs contempladas na CDA e na execução fiscal, visto que continham os mesmos vícios, porém houve omissão nesse sentido, que ensejou o prosseguimento do processo executivo, causando danos ao contribuinte.
Na sentença proferida, posteriormente confirmada pela Quarta Turma do TRF4, o juiz reconheceu a fraude das DIRPFs também no que se refere aos exercícios de 2002/2003 e 2003/2004, declarando a nulidade da CDA, a exemplo do efetuado na DIRPF de 2001/2002, que foi cancelada pela Receita Federal após as informações apresentadas pelo contribuinte.
Concluiu-se que o contribuinte foi exposto à execução fiscal com penhora de bens sem nada dever à União em razão de declarações de imposto sobre a renda lançadas por terceiro com o uso de seu CPF, gerando transtornos que poderiam ser evitados se os agentes da Receita Federal e da Procuradoria da Fazenda Nacional tivessem efetuado a verificação completa das demais declarações existentes no sistema. Tal conduta foi considerada grande falha no exercício da função fiscal.
2 Responsabilidade do Estado por dano tributário: uma experiência comparada entre Itália e Brasil
A partir da interpretação dos enunciados prescritivos que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente dos arts. 37, caput e § 6º, e 150 da CF/88, do art. 97 do CTN e dos arts. 186, 187 e 927 do CC, verifica-se que, além de submeter particulares, o dever de não causar danos a outrem, isto é, a norma geral neminem laedere, aplica-se à União, inclusive no exercício da função fiscal, tornando-a responsável pelo ressarcimento dos danos causados pelos agentes que atuam na prática de atos dirigidos à imposição de tributos.
Isso porque, ao estipular princípios constitucionais que limitam o poder de tributar – como legalidade, anterioridade, irretroatividade, igualdade, capacidade contributiva, vedação do tributo com efeitos confiscatórios –, o legislador demonstrou ter reconhecido o alto potencial destrutivo da imposição tributária, já que os fatos tributáveis atrelam-se a comportamentos que se conectam às liberdades fundamentais, optando por estabelecer um parâmetro de atuação para os agentes do Fisco justamente para evitar danos ao contribuinte.
Para deflagrar a responsabilidade do Estado, requer-se a presença dos elementos estabelecidos em lei (art. 37, § 6º, da CF e arts. 927 e 186 do CC), sem os quais não existe dever de indenizar. Tais elementos são: i) conduta (lícita ou ilícita) do agente público; ii) dano; e iii) nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o dano. Neste artigo, será analisada a conduta causadora do dano em maiores detalhes por se tratar de um exemplo de omissão, apesar de todos os elementos possuírem a mesma importância em matéria de responsabilidade civil.
Considera-se conduta qualquer comportamento comissivo (positivo) ou omissivo (negativo) que produz dano por meio de uma relação de causalidade. Para o Direito, trata-se da ação ou omissão impulsionada pela psique, ou, como se convencionou dizer, da ação ou omissão voluntária, que se refere à participação decisiva do ser humano na ocorrência do evento.(2)
Os atos comissivos (positivos) revelam-se por uma ação, isto é, por um movimento corpóreo ou comportamento positivo, constituindo a forma mais comum de exteriorização da conduta, já que todos estão obrigados a deixar de praticar atos que possam causar lesão à esfera jurídica de terceiros, segundo a norma neminem laedere. Em tal caso, a violação do dever geral de abstenção dá-se por um fazer (facere). Poderá corresponder à realização de um único ato ou de uma série de atos coordenados entre si praticados em função de um fim comum.
Ao exercer a função fiscal, o agente público pratica condutas comissivas (positivas) capazes de produzir danos ao contribuinte por uma relação de causalidade. A primeira delas diz respeito à constituição do crédito tributário pelo lançamento, cuja realização é obrigatória e vinculada sempre que for praticado o fato gerador que se enquadra na previsão legal.
O lançamento tributário pode ensejar a prática de outros atos que caracterizam uma ameaça concreta ao patrimônio do contribuinte, como a inscrição do débito em dívida ativa e a emissão da CDA, o indeferimento de certidões negativas de débito fiscal, a inscrição do nome no Cadin, a indisponibilidade de bens e de direitos, o ajuizamento da execução fiscal etc.
Tais atos impedem a participação em procedimentos licitatórios, o acesso ao crédito junto às instituições financeiras e a prática de diversos atos importantes para o desenvolvimento da atividade empresarial, podendo gerar gastos, danos à imagem e o encerramento da empresa.
Os atos omissivos (negativos) constituem um não fazer (non facere) relevante para o Direito por atingir um bem juridicamente tutelado. Ensejará a responsabilidade do Estado se houver a violação do dever do agente público de intervir em determinada situação para evitar o dano. Sua essência está em não se ter agido de certo modo quando a ação era necessária. Logo, requer a efetiva potencialidade do agir, associada ao dever jurídico de fazê-lo.(3)
O não exercício da autotutela pelo agente público que deixa de anular atos ilegais para restaurar a legalidade violada é um exemplo de conduta omissiva que pode produzir danos ao contribuinte passíveis de ressarcimento pelo Estado. Nesse sentido manifestou-se a Corte de Cassação italiana no Acórdão nº 6.283/2012, no qual afirmou que o não exercício da autotutela, sobretudo em matéria tributária, pode caracterizar a omissão qualificada pela violação do dever de diligência, impondo a responsabilidade estatal.
Será efetuada uma breve análise dos acórdãos em que a Corte de Cassação italiana se manifestou sobre a omissão dos agentes do Fisco em anular o ato tributário ilegítimo, dada a semelhança que apresentam com o recente acórdão proferido pela Quarta Turma do TRF4, que tornou ainda mais próxima a experiência brasileira da italiana no que se refere ao ressarcimento de danos tributários.
2.1 Dever de autotutela tributária no Direito italiano
Segundo ensinamentos de Alessandro Borgoglio, a autotutela corresponde ao poder da administração pública de corrigir e eliminar, por iniciativa própria, em sede de reexame, os atos ilegítimos e infundados. Essa manifestação da função administrativa está fundamentada no art. 97 da Constituição italiana, que prescreve os princípios de bom andamento e imparcialidade do poder público.(4)
O entendimento da Corte de Cassação italiana é no sentido de que, com base nesses princípios, se o ato tributário apresentar qualquer vício – seja porque foi praticado com violação às normas jurídicas, seja porque não garante uma arrecadação fiscal correta –, a administração tributária possui o dever (e não a faculdade) de adotar todas as medidas necessárias para sanar a ilegitimidade, anulando-o em autotutela.(5)
Apesar de ser desenvolvida pelo Direito Administrativo, a autotutela foi introduzida em matéria tributária na Itália com o propósito de garantir a aplicação efetiva dos princípios de legalidade e capacidade contributiva, os quais estão estabelecidos, respectivamente, nos arts. 23 e 53 da Constituição italiana, para disciplinar dois direitos de relevância pública: i) o direito do Fisco de arrecadar tributos para suprir os interesses públicos; e ii) o direito do contribuinte de ser submetido à imposição tributária apenas nos casos e na medida estabelecida em lei.
A coexistência desses direitos suscita à administração tributária o dever jurídico de agir em respeito de ambos. Portanto, a autotutela é um mecanismo para garantir e recuperar a legalidade e a transparência da ação administrativa em âmbito tributário.
Sob a ótica do cidadão, a autotutela apresenta-se como uma garantia capaz de evitar as consequências danosas de um ato praticado de forma ilegítima; ou, na hipótese de esses danos já terem ocorrido, de obter a sua interrupção ou remoção.(6)
Para Giuseppe Debenedetto, o exercício da autotutela é a manifestação significativa da administração tributária de estender a mão ao contribuinte para que a imposição tributária seja exercida sobre uma sólida base de confiança recíproca, sendo um dos princípios previstos pela Lei nº 212/00 (Estatuto dos Direitos do Contribuinte), que rege as relações tributárias.(7)
É possível que o contribuinte sofra danos não em razão da emissão de ato impositivo ilegítimo, mas da sucessiva omissão da anulação do ato em autotutela pelo Fisco, como no caso em que o contribuinte recebe a notificação do lançamento sem qualquer negligência do agente público, porém com total desconhecimento da sua real situação fiscal, porque o contribuinte não apresentou a declaração ou porque as informações nela constantes são incorretas. Após a sua manifestação e a entrega de documentos contendo as informações adequadas, o lançamento anteriormente efetuado resultará ilegítimo e infundado, devendo, portanto, ser anulado.
Em tal caso, a conduta antijurídica do ente público resultará da falta de reexame do ato ilegítimo depois de conhecer os motivos pelos quais o ato é infundado, isto é, não resultará da atividade primária de lançamento, pois essa conduta foi praticada sem qualquer negligência do agente público. Trata-se exatamente da situação analisada pelo TRF4, em que, inicialmente, devido ao não conhecimento da falsificação dos documentos do contribuinte, o Fisco prossegue com a perseguição do crédito tributário em âmbito judicial. Contudo, com a declaração de não reconhecimento de DIRPF e a constatação da fraude dos documentos, competia aos agentes do Fisco o cancelamento também da dívida referente aos exercícios de 2002/2003 e 2003/2004.
Especificamente em matéria fiscal, a autotutela tributária e a responsabilidade civil do Estado foram acolhidas pela Corte de Cassação italiana em três acórdãos que demonstram a evolução do entendimento em relação ao tema: nº 698/2010, nº 5.120/2011 e nº 6.283/2012.
a) Cassação Civil, Seção III, nº 698, 19 de janeiro de 2010
Trata-se de acórdão proferido pela Seção III da Corte de Cassação Civil, em que o Fisco recorreu por ter sido condenado ao pagamento de 705,40 euros a título de ressarcimento de danos causados ao contribuinte pelo envio de notificação de lançamento cobrando tributo no valor de 779,85 euros referentes a rendimentos declarados no exercício financeiro de 1996.
A pretensão tributária foi declarada ilegítima e, consequentemente, anulada, razão pela qual o contribuinte requereu a condenação do Fisco ao reembolso das despesas decorrentes da cobrança, bem como ao ressarcimento do dano existencial.
Em seu recurso, o Fisco discorda da sentença impugnada na parte em que se afirma que, ao anular o ato impositivo ilegítimo tardiamente, agiu de forma culposa, violando princípios que regulam a ação administrativa dispostos no art. 97 da Constituição e, consequentemente, a norma neminem laedere. Alega que não está preenchido o requisito injustiça do dano, visto que a anulação do ato em autotutela não constitui obrigação, mas expressão do exercício do poder discricionário, de modo que não há que se falar em culpa.
A Corte de Cassação afirma que a motivação apresentada pelo Fisco em seu recurso é infundada, pois, quando o poder de autotutela não for tempestivamente exercitado pelo Fisco, a ponto de constranger o contribuinte a suportar as despesas legais e de outros gêneros para obter, pela via judicial, a anulação do ato, a responsabilidade do Estado é inegável. Não se trata da indevida interferência da jurisdição no exercício do poder de autotutela, mas da verificação de que o dano consequente do ato ilegítimo surtiu todos os efeitos porque a administração pública não interveio tempestivamente para evitá-los com os instrumentos que a lei lhe atribuiu.
Portanto, a Suprema Corte considerou incompatível com os princípios jurídicos de ação administrativa dispostos no art. 97 da Constituição, logo, culposa, a demora injustificada e desarrazoada para a anulação de um ato de imposição tributária após a manifestação tempestiva do contribuinte, que foi obrigado a propor ação judicial para que o ato fosse anulado. Tal fato, por si só, já é suficiente para justificar a responsabilidade do Estado pelo dano decorrente da omissão ilícita que revela a violação da norma neminem laedere.
b) Cassação Civil, Seção III, nº 5.120, de 03 de março de 2011
Esse tema também foi objeto de análise pela Seção III da Corte de Cassação italiana no Acórdão nº 5.120, de 03 de março de 2011. Na ocasião, foi considerada culposa a conduta do Fisco de deixar de examinar o pedido formulado pelo contribuinte em instância de autotutela e, consequentemente, não anular o ato ilegítimo, obrigando-o a ajuizar ação judicial para que o ato fosse anulado pelo Poder Judiciário.
O contribuinte foi notificado do lançamento do imposto sobre a renda referente a quatro exercícios financeiros no valor de 5.971,50 euros. Apesar de devidamente instaurada a instância de autotutela em via administrativa para informar a existência de um erro de cálculo na cobrança do tributo e requerer a anulação do ato, o Fisco, em vez de anular o ato visivelmente ilegítimo por erro contábil, optou por inscrever o débito em dívida ativa e prosseguir com a execução fiscal. Logo, não restou alternativa ao contribuinte que impugnar judicialmente o lançamento, requerendo a sua anulação e o ressarcimento dos danos suportados.
Em primeira instância, o Estado foi condenado a ressarcir os danos suportados pelo contribuinte mediante o pagamento de 894,90 euros, acrescidos de juros e correção monetária, com o seguinte fundamento: a administração tributária tem o dever de obedecer à norma neminem laedere, prevista na cláusula geral do art. 2.043 do CC, que estabelece que “qualquer fato doloso ou culposo que causa a outrem um dano injusto obriga aquele que cometeu o fato a ressarcir o dano”.
Portanto, ao deixar de apurar as informações apresentadas pelo contribuinte sobre o erro contábil na cobrança do tributo e não anular o ato visivelmente ilegítimo, prosseguindo em execução fiscal, a administração tributária violou as normas de prudência e diligência que caracterizam a culpa e conferem o caráter ilícito à conduta.
Consequentemente, houve a violação da norma neminem laedere devido ao dano econômico provado pelo contribuinte, o qual: i) contratou profissional habilitado para ajuizar ação judicial perante o Poder Judiciário; ii) deslocou-se, por diversas vezes, para ir ao ofício da administração tributária na tentativa de solucionar o problema amigavelmente; e iii) arcou com as despesas acessórias de todo esse processo.
No recurso apresentado à Corte de Cassação, o Fisco, além de reputar inaplicável ao Estado o conteúdo do art. 2.043 do CC, declara a ausência do elemento injustiça do dano, pois considera que a anulação do ato ilegítimo em autotutela não constitui uma obrigação, mas mera faculdade da administração pública, de modo que o particular não é titular de qualquer posição subjetiva em relação à retirada do ato.
Contudo, para a Corte de Cassação, toda atividade da administração pública, ainda que no campo da discricionariedade, deve se desenvolver dentro dos limites estabelecidos pela lei e pela norma neminem laedere, codificada no art. 2.043 do CC, sendo consentido ao Poder Judiciário aferir se houve conduta dolosa ou culposa do agente público que, ao descumprir essa norma, tenha determinado a violação de um direito subjetivo. Nesse sentido, o acórdão da Corte de Cassação Civil, Seções Unidas, nº 722, de 15 de outubro de 1999.
Considerou-se ilícita a conduta da administração tributária de deixar de anular o lançamento ilegítimo e prosseguir em execução fiscal após as reclamações do contribuinte, inclusive com a entrega de documentos suficientes para comprovar que o tributo exigido era indevido em virtude de visível erro contábil. Afirma-se que houve violação da norma neminem laedere e dos princípios que regulam a ação administrativa dispostos no art. 97 da Constituição.
Em vez de inquirir a respeito da veracidade das alegações apresentadas e do motivo do descontentamento do contribuinte, o Fisco simplesmente ignorou o pedido e as razões de seu lamento, caracterizando a conduta como culposa e, consequentemente, ilícita.
De acordo com a Suprema Corte, um simples controle dos documentos pelo Fisco poderia solucionar o problema, dada a incontestável ilegitimidade do ato de imposição tributária, evitando os dissabores experimentados pelo contribuinte. Tal entendimento também se impõe, por exemplo, se o contribuinte comprovar que a lei aplicada ao caso é inadequada, que o tributo exigido foi devidamente pago, ou que o fato gerador não foi jamais praticado. Nessas hipóteses, é fácil verificar a ilegitimidade do ato, de modo que será dever da administração tributária corrigir o equívoco.
Afirma-se que a anulação do ato é verdadeiro dever da administração tributária, e não mera faculdade, sempre que for visivelmente ilegítimo.(8)
c) Cassação Civil, Seção III, nº 6.283, de 20 de abril de 2012
Outro caso interessante sobre o ressarcimento dos danos decorrentes da omissão do Fisco em anular ato ilegítimo refere-se ao Acórdão nº 6.283, proferido pela Seção III da Corte de Cassação, em 20 de abril de 2012, em que o contribuinte propõe a instância de autotutela para requerer a anulação do lançamento por considerá-lo ilegítimo devido a erro de cálculo efetuado pela administração tributária.
Após analisar a instância de autotutela, o Fisco demora algum tempo, mas anula o ato ilegítimo. Não obstante isso, o contribuinte propõe ação judicial de ressarcimento de danos, lamentando-se dos prejuízos decorrentes da anulação tardia.
Em primeira instância, foi acolhido o pedido de ressarcimento de danos efetuado pelo contribuinte perante o Poder Judiciário, condenando-se o Estado ao pagamento de valor a título de danos materiais e morais em virtude da anulação tardia do ato ilegítimo. Todavia, em sede recursal, a sentença foi reformada pelo tribunal, que rejeitou o pedido do contribuinte com o seguinte fundamento: a responsabilidade do Fisco não é in re ipsa, pois requer um quid pluris, que corresponde à comprovação da lesão dos princípios de imparcialidade e boa administração na prática do ato ilegítimo, os quais comprovam a culpa do aparato administrativo, declarando-se que tal prova não constava no processo.
Afirmou-se ainda que a anulação do ato ilegítimo pelo Fisco foi tardia por culpa do contribuinte, que deixou de apresentar os documentos com as informações necessárias para que o erro fosse tempestivamente sanado.
Em seu julgamento, a Corte de Cassação declarou que a atividade da administração pública, ainda que no campo da discricionariedade, deve ser sempre desenvolvida dentro dos limites impostos pela lei e pela norma neminem laedere, de forma que o Poder Judiciário pode verificar se houve conduta dolosa ou culposa que, em violação das normas supraindicadas, determinou a lesão de um direito subjetivo.
De fato, devido aos princípios de legalidade, imparcialidade e boa administração, estabelecidos no art. 97 da Constituição, a administração pública submete-se às consequências do art. 2.043 do CC, colocando-se tais princípios como limite externo à discricionariedade.
Para a Corte de Cassação, os princípios que regulam a ação administrativa dispostos no art. 97 da Constituição italiana impõem à administração tributária que apure diligentemente os fatos ocorridos todas as vezes que for informada pelo contribuinte do erro que possa ter cometido. Se o erro for confirmado, impõe-se também que o ato reconhecidamente ilegítimo seja anulado.
Conforme se pronunciou a Suprema Corte de Cassação no referido acórdão, cujo texto está reproduzido abaixo, em tal situação, não há espaço para a mera discricionariedade, pois isso resultaria em um arbítrio que contrasta com os princípios de ação administrativa, os quais informam a atividade pública.
“È evidente che le predette regole impongono alla pubblica amministrazione, una volta informata dell’errore in cui è incorsa, di compiere le necessarie verifiche e poi, accertato l’errore, di annullare il provvedimento riconosciuto illegittimo o, comunque, errato. Non vi è, dunque, spazio alla mera discrezionalità poiché essa verrebbe a sconfinare necessariamente nell’arbitrio, in palese contrasto con l’imparzialità, correttezza e buona amministrazione che sempre debbono informare l’attività dei funzionari pubblici.” (Corte de Cassação, Seção III, de 20 de abril de 2012, nº 6.283)
Os princípios administrativos impõem ao Fisco o reconhecimento em tempo razoável dos direitos do contribuinte, com a anulação do ato ilegítimo, apesar da inexistência de previsão legal do termo de conclusão dos procedimentos.
“L’obbligo per la P.A. di agire nel rispetto delle regole di imparzialità, correttezza e buona amministrazione impone il risconoscimento in tempi ragionevoli del diritto del contribuente, anche quando, come rivelato dal Tribunale, no sia previsto uno specifico termine per l’adempimento. Spetta, dunque, al giudice di merito stabilire, volta per volta e considerando la situazione concreta (ad esempio: il numero di pratiche cui l’ufficio deve far fronte, la loro trattazione in ordine cronologico, il grado di complessità dell’accertamento, ecc.) se il tempo impegato dalla P.A. sia o meno rispettoso delle regole indicate.” (Corte de Cassação, Seção III, 20 de abril de 2012, nº 6.283)
Conclui-se que compete ao Poder Judiciário analisar se o tempo que foi empregado para anular o ato ilegítimo respeitou tais princípios, considerando as particularidades do caso concreto, como, por exemplo, o número de práticas a serem analisadas pelo ofício, a ordem cronológica, o grau de complexidade da exigência tributária, etc.
3 O exercício da autotutela para a anulação do ato ilegítimo pelo Fisco no Brasil
Algo semelhante ocorre no Brasil, pois, ao exercer a função fiscal, a Receita Federal e a Procuradoria da Fazenda Nacional sujeitam-se ao controle dos atos praticados, devendo fiscalizá-los e corrigi-los para adequá-los à norma jurídica aplicada, garantindo a conformidade de sua atuação com os princípios impostos pelo Direito brasileiro. Esse controle constitui um poder-dever, precisamente por sua finalidade corretiva, não podendo ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilização do ente público e do agente que se omitiu.
Portanto, os atos tributários ilegais devem ser anulados em autotutela para restaurar a legalidade violada. Trata-se de um poder amplamente reconhecido pelo Poder Judiciário com a edição da Súmula nº 473 do STF, que dispõe: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada a apreciação judicial”.(9)
Após a declaração de não reconhecimento de DIRPF efetuada pelo contribuinte e o cancelamento do débito do exercício 2001/2002 pela Receita Federal por fraude, com expedição de ofício comunicando a Procuradoria da Fazenda Pública, a omissão do ente público em aferir a legalidade das declarações dos exercícios 2002/2003 e 2003/2004, as quais escoravam a CDA, ensejando o prosseguimento e as consequências do processo executivo, revela negligência que qualifica o comportamento como ilícito em decorrência de culpa.
O pronto exame da fraude de tais declarações e a desistência do processo executivo pela Fazenda Pública, conforme o art. 26 da LEF, além de recuperar a legalidade violada, seria suficiente para evitar os danos suportados pelo contribuinte com a contratação de advogado, a inscrição do nome no Cadin durante anos e a penhora do veículo automotor, pois a citação só ocorreu em 2013, ou seja, 7 anos depois do reconhecimento da fraude pela Receita Federal.
Em matéria fiscal, como os atos são necessariamente vinculados, segundo os arts. 3º e 142 do CTN, existe verdadeiro dever do ente público de anular os atos ilegais, sobretudo nos casos em que a incompatibilidade com o ordenamento jurídico é notória, a exemplo da presente situação, em que a Receita Federal já havia reconhecido a fraude e comunicado a Procuradoria da Fazenda Pública.
Conforme anteriormente afirmado, a anulação de atos tributários ilegais constitui a manifestação significativa do Fisco de estender a mão ao contribuinte para que a imposição tributária seja exercida sobre a sólida base da confiança recíproca, que condiz com os princípios de legalidade, igualdade, eficiência e boa-fé, os quais, em conjunto, devem constituir o alicerce da relação tributária, sendo um excelente mecanismo para reduzir o contencioso tributário, melhorar a relação entre Fisco e contribuinte e assegurar a concretização do dever de respeitar as normas precisamente impostas pelo legislador para a realização da imposição tributária.(10)
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Notas
1. TRF4. 4. T. Apelação Cível n. 5003256-87.2015.4.04.7210/SC. Rel. Des. Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle. J. 07.06.2017.
2. MARQUES, Frederico. Tratado de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955. v. 2. p. 40-41.
3. CRETELLA JUNIOR, José. Tratado de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1970. v. 8. p. 210.
4. BORGOGLIO, Alessandro. Risarcimento al contribuente per l’omessa autotutela. Cass., n. 5120, del 3 marzo 2011. Il fisco, fascicolo 2, 2011. p. 1768.
5. FALSITTA, Gaspare. Corso istituzionale di diritto tributario. 5. ed. Padova: Cedam, 2014. p. 214.
6. GIOÈ, Chiara. Profili di responsabilità civile dell’Amministrazione Finanziaria. Padova: Cedam, 2009. p. 192.
7. DEBENEDETTO, Giuseppe. I danni cagionati dal fisco. In: VIOLA, Luigi. I danni cagionati dallo Stato, dalla Pubblica Amministrazione e dal Fisco. Matelica: Halley, 2008. p. 562.
8. CHINDEMI, Domenico. Comportamento illecito dei dipendenti degli uffici finanziari e risarcimento del danno a favore del contribuente. Responsabilità civile e previdenza, n. 9, 2011. p. 1763-1764.
9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 800.
10. DEBENEDETTO, Giuseppe. I danni cagionati dal fisco. In: VIOLA, Luigi. I danni cagionati dallo Stato, dalla Pubblica Amministrazione e dal Fisco. Matelica: Halley, 2008. p. 562.
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