“Reformar para excluir”: consequências do aumento do tempo de contribuição nas principais modalidades de aposentadoria do RGPS (1)

Júlia Lenzi Silva

Doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP, Mestra em Direito pela Unesp, Professora de Direito Previdenciário e da Seguridade Social

publicado em 25.08.2017

Resumo

Os posicionamentos contrários às propostas de reforma da previdência social têm centrado suas críticas na instituição de uma idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres. Com o objetivo de ampliar o debate e fortalecer as correntes que denunciam o agravamento da situação da classe trabalhadora, centramos nossa análise nas propostas de aumento do tempo de contribuição, destacando sua incidência nas principais modalidades de aposentadorias do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). A partir desse aporte, pretendemos aclarar a violência e a profundidade das alterações propugnadas, as quais, se aprovadas, poderão gerar a exclusão da maioria dos trabalhadores e trabalhadoras do âmbito, já precário, da proteção previdenciária no Brasil.

Palavras-chave: Reforma da previdência. Aumento do tempo de contribuição. Aposentadoria. Exclusão previdenciária.


Introdução

A proposta de reforma da previdência social está sistematizada em dois documentos: a Proposta de Emenda Constitucional nº 287/2016 (PEC 287/2016), elaborada pela equipe econômica do atual governo e apresentada pelo Poder Executivo em 5 de dezembro de 2016, e o seu relatório substitutivo, elaborado pelo relator da comissão especial, Dep. Arthur Maia (PPS/BA), e divulgado em 19 de abril de 2017. Desde a sua apresentação, a reforma previdenciária tem sido objeto de críticas de intelectuais e organizações da classe trabalhadora, tendo sido fator de mobilização de levantes populares significativos em todo o país,(2) apesar dos esforços governamentais no sentido do convencimento acerca de sua “inevitabilidade”.(3)

De início, salta à percepção a rapidez na tramitação da proposta: menos de seis meses foram gastos entre a elaboração do projeto e o parecer por sua admissibilidade, restando demonstrado o pouco empenho dos representantes políticos em debater suas propostas com a sociedade. Essa pressa pela aprovação da reforma previdenciária não se coaduna com as características essenciais da política pública de previdência social, que talvez possa ser considerada como a que demanda maior planejamento de longo prazo, já que as alterações implementadas afetam não apenas as gerações do presente, mas a vida e a segurança de trabalhadores(as) e aposentados(as) no futuro, afinal, como assevera Vicente de Paula Faleiros (1998, p. 30), “[...] Previdência Social não constitui somente um arcabouço técnico de seguro social, de caráter contributivo, mas um referencial de proteção social de um povo e de uma nação [...]”.

Nesse sentido, tomando em consideração que grande parte da argumentação opositiva à reforma tem se estruturado em torno da instituição de idades mínimas para a aposentadoria, este artigo centra sua análise nas consequências do aumento do tempo de contribuição para as principais modalidades de aposentadoria do RGPS. Tal recorte temático não é feito ao acaso, mas pautado na percepção de que esse é o cerne do desmonte da proteção social a ser promovido pela PEC nº 287/2016 e por seu substitutivo, uma vez que outros benefícios previdenciários de importante impacto social, como a pensão por morte e o auxílio-doença, já foram reformados pela via infraconstitucional, por meio da medida provisória (MP) nº 664, já convertida na Lei nº 13.135/2015, e das MPs nº 739, de 2016, e nº 767, de 2017 – a primeira teve sua vigência encerrada e, por isso, é praticamente “reeditada” na segunda. Nessa linha, por questão de honestidade intelectual, é preciso dizer que, tomado o histórico legislativo a respeito da previdência social, constata-se que, pelo menos a cada dois anos, desde 1991, com a promulgação do Plano de Benefícios (Lei nº 8.213/91) e do Plano de Custeio (Lei nº 8.212/91), o Brasil passa por uma reforma previdenciária de maior ou menor intensidade, com o escopo exclusivo de redução dos patamares de proteção social, afetando, sobretudo, os(as) trabalhadores(as) que ocupam os postos mais precarizados no mercado de trabalho, com menores rendimentos, que veem a aposentadoria como um direito cada vez mais distante de concretização, diante do imperativo único de “proteção aos cofres públicos”.(4) Ademais, a opção por tratar do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), gerenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), deve-se ao fato de que ele é o responsável pela cobertura previdenciária de todos que trabalham na iniciativa privada, bem como dos servidores públicos não abrangidos por regimes próprios.

Entretanto, antes de abordar os aspectos normativos acerca das mudanças nas aposentadorias, entende-se que seja imprescindível para o debate conhecer um pouco da realidade estatística acerca da previdência social e do mercado de trabalho no Brasil. Com isso, pretende-se evitar que o debate acerca da reforma previdenciária se desvincule do chão da história e do aspecto de garantia da possibilidade de reprodução da vida de trabalhadores e trabalhadoras, afinal, a estratégia mais sagaz para obter apoio à redução contínua de direitos previdenciários tem sido transformar a previdência em “assunto técnico”, em “pauta econômica”, desvinculando-a da realidade de seus(suas) beneficiários(as)(5): de acordo com o IBGE, para cada benefício previdenciário concedido, são, em média, beneficiadas 2,5 pessoas, sendo que 69% dos benefícios concedidos têm valor de até um salário mínimo, e 92% têm valor inferior a três salários mínimos (ou seja, valores inferiores a R$ 2.800,00). Em 70% dos municípios brasileiros, o montante que circula via concessão de benefícios previdenciários supera os repasses do Fundo de Participação dos Municípios, e, em 82%, esse montante supera o valor da arrecadação tributária municipal. Tais dados demonstram que, diferentemente dos discursos midiáticos acerca das “superaposentadorias”, cerca de 70% dos benefícios previdenciários do RGPS não superam o valor do mínimo e, ainda assim, são fatores cruciais para a sobrevivência das famílias brasileiras e a movimentação das economias nos municípios.

Feita a abordagem estatística, passa-se agora ao panorama normativo, com uma observação de caráter metodológico: as informações estruturantes da argumentação produzida foram extraídas do texto da PEC nº 287/2016 e de seu relatório substitutivo, cujas referências completas encontram-se no tópico final deste artigo. Dado tratar-se de temática na pauta do dia, ainda há carência de materiais teóricos atinentes ao tema, razão pela qual a construção se limita quase que exclusivamente aos textos normativos, esperando-se que a publicação deste trabalho contribua para o processo de reflexão e debate acadêmico.

1 O fim das modalidades autônomas de aposentadoria por tempo de contribuição e por idade: contribuir mais para receber menos

A primeira grande modificação trazida pela proposta de reforma previdenciária dá-se nos âmbitos da aposentadoria por tempo de contribuição e da aposentadoria por idade, que deixam de existir como modalidades autônomas, passando-se a prever uma fórmula única, que leva em consideração idade mínima + tempo mínimo de contribuição. Nesse sentido, a PEC nº 287/2016, com as modificações do relatório substitutivo, prevê que só poderão se aposentar os homens que tiverem no mínimo 65 anos e as mulheres com idade mínima de 62 anos, exigindo-se, de ambos, no mínimo 25 anos de tempo de contribuição. Comparando-se com as regras atuais, há um aumento de dez anos no tempo de contribuição mínimo que assegura uma aposentadoria: hoje, pela regra geral, homens com 65 anos e mulheres com 60 conseguem se aposentar por idade com 15 anos de tempo de contribuição (180 meses), obtendo, no mínimo, 85% do salário de benefício como renda mensal inicial (assegurado o piso de um salário mínimo – art. 201, § 2º, da CF). Ademais, hoje, homens e mulheres que atingem as referidas idades dispondo de 30 anos de contribuição conseguem obter 100% do salário de benefício como renda mensal inicial de suas aposentadorias por idade (cf. arts. 48 e 50 c/c art. 25, II, da Lei nº 8.213/91).

Assim, caso a reforma seja aprovada, as mulheres já são, de imediato, prejudicadas com acréscimo de dois anos na idade mínima exigida,(6) e todos,(7) trabalhadores e trabalhadoras, além de terem de contribuir por, no mínimo, mais dez anos para obter o direito à aposentadoria, terão seus rendimentos severamente reduzidos pela nova fórmula de cálculo: em vez de, no mínimo, 85% do salário de benefício como renda mensal inicial (RMI da aposentadoria por idade), com 25 anos de tempo de contribuição – o tempo mínimo, pela nova regra, que garantiria, hoje, uma RMI de 95% no caso da aposentadoria por idade –, os(as) futuros(as) aposentados(as) terão 70% do salário de benefício como RMI, sendo que apenas com 40 anos de tempo de contribuição será garantida uma RMI de 100% do salário de benefício.(8)

Se o aumento formal de dez anos no tempo de contribuição já é impactante por seus resultados matemáticos, quando combinamos isso com a realidade do mercado de trabalho no Brasil, o resultado é socialmente catastrófico: tendo em conta que a maioria dos(as) trabalhadores(as) brasileiros(as) consegue verter, em média, apenas cinco ou seis contribuições para a previdência por ano – em razão da alta taxa de informalidade e de rotatividade nos postos de trabalho(9) –, os 25 anos de tempo de contribuição se convertem, na realidade, em 50 anos de trabalho no mercado formal, o que significa, tomando por base os dados já apresentados, trabalhar, de forma contínua, dos 16 aos 66 anos de idade para conseguir uma aposentaria no valor de um salário mínimo.

Em verdade, quando analisamos os dados acerca das concessões de aposentadoria por idade no Brasil, modalidade que corresponde a cerca de 70% de todas as aposentadorias concedidas pelo INSS, constatamos, enfim, o que a reforma da previdência vai ocasionar nas vidas das pessoas: considerando o ano de 2015, por exemplo, 60% das aposentadorias por idade concedidas foram para trabalhadores(as) que não tinham 20 anos de tempo de contribuição (lembrando que a regra atual exige 15 anos como tempo mínimo) e, em 79% delas, os beneficiários não tinham 25 anos de tempo de contribuição. Isso significa, em última instância, que, se a PEC nº 287/2016 for aprovada, cerca de 80% dos(as) trabalhadores(as) brasileiros(as) não conseguirão se aposentar.(10)

Ainda quanto a essa modalidade combinada de aposentadoria, que exige idade e tempo de contribuição mínimos, é preciso destacar a grave situação dos segurados especiais, que, caso a PEC nº 287/2016 venha a ser aprovada, estarão praticamente excluídos da proteção previdenciária. Isso porque, de acordo com as propostas da reforma, para ter direito a aposentadoria no valor de um salário mínimo, o segurado especial teria de efetivamente contribuir de forma individualizada por, no mínimo, 15 anos, exigência absolutamente deslocada da dura realidade de pequenos agricultores que trabalham em regime de economia familiar, pescadores artesanais e seringueiros extrativistas, categorias abarcadas pela figura do segurado especial (art. 11, VII, da Lei nº 8.213/91). Atualmente, até por política de incentivo à permanência das famílias no campo,(11) essas categorias de trabalhadores precisam comprovar a manutenção de seus trabalhos nessas condições pelo período mínimo de 15 anos, além da idade mínima de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, o que lhes garante uma aposentadoria no valor de um salário mínimo (art. 39, I, da Lei nº 8.213/91) – a contribuição somente é exigida quando é feita a comercialização dos produtos, sendo ela válida para todo o núcleo familiar (art. 25, I e II, da Lei nº 8.212/91). Exigir que cada um dos membros da família que trabalha em regime de economia familiar, produzindo para o próprio sustento,(12) verta contribuição mensal para a previdência, ainda que com alíquotas “favorecidas”, como prevê o texto do relatório, é verdadeiramente optar por excluí-los da rede de proteção previdenciária, uma vez que não só não têm condições econômicas de o fazer, como, inclusive, enfrentariam dificuldades de locomoção para regularizar suas situações junto à previdência mês a mês.

Por último, ainda no âmbito dessa mesma modalidade, é importante destacar a situação jurídica dos professores do ensino fundamental e médio, uma vez que as condições especiais para a aposentadoria dos professores do ensino superior já foram suprimidas com a EC nº 20/1998, o que exemplifica nossa afirmação acerca do movimento contínuo de redução de direitos previdenciários. De acordo com o texto do relatório substitutivo, caso a PEC nº 287/2016 seja aprovada, os professores e as professoras terão 60 anos como idade mínima para se aposentar, sem diferenciação de gênero, o que penaliza, uma vez mais, as mulheres, que são ampla maioria no âmbito dessa categoria profissional e sustentam duplas, triplas e até quádruplas jornadas de trabalho. Além disso, de professores e professoras também serão exigidos 25 anos de tempo de contribuição como mínimo para aposentadoria, sendo que, com esse tempo, terão direito a apenas 70% do salário de benefício como renda mensal inicial da aposentadoria. Tomando-se em consideração que a profissão docente demanda formação em curso superior, o que acaba por retardar o ingresso no mercado de trabalho, imaginemos uma professora que começa a trabalhar na área aos 30 anos: ela terá de trabalhar, pelo menos, até os 70 anos de idade caso queira garantir uma renda mensal inicial de 100% do salário de benefício... o que, de imediato, em consonância com o princípio empático, deveria nos fazer refletir acerca do que significa, em termos de saúde física e mental, estar dentro de sala de aula por 40 anos ininterruptos.

Vista, com riqueza de cenários exemplificativos e a partir do recorte do aumento do tempo contributivo, a profundidade das mudanças nos benefícios de aposentadoria por idade e aposentadoria por tempo de contribuição, que passarão a compor uma única modalidade, com severas exigências, cumpre agora salientar as perversas alterações que estão propostas para um dos poucos benefícios previdenciários que, na atualidade, garantem renda de 100% do salário de benefício, uma vez que a razão de sua concessão passa ao largo da “vontade” do(a) segurado(a), estando fundada na “necessidade premente”. Estamos falando da aposentadoria por invalidez.

2 O rebaixamento de valores das aposentadorias por invalidez: “salvar” a previdência para quem?

No tocante a essa modalidade de aposentadoria, de início, é de relevo explicitar que o já aludido processo de restrição de direitos previdenciários tem feito aumentar as dificuldades para sua concessão e seu gozo. Por exemplo, a partir da redação do art. 42 da Lei nº 8.213/91, que atesta que a aposentadoria por invalidez é devida quando o segurado for “considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência”, sendo ela devida “enquanto permanecer nesta condição”, a Medida Provisória nº 767, de 2017, já referida neste texto, incluiu o § 5º ao art. 43 da Lei nº 8.213/91, dispondo que o segurado em gozo de aposentadoria por invalidez pode ser convocado “a qualquer tempo para avaliação das condições que ensejaram o afastamento ou a aposentadoria”, dando azo à interpretação da precariedade absoluta do ato de concessão, que pode ser revogado a qualquer momento, ficando na mera dependência do resultado da avaliação pericial administrativa.

De qualquer forma, é preciso reconhecer que, figurando como modalidade de aposentadoria não eletiva, ou seja, que decorre não da manifestação de vontade do segurado, mas de causa superveniente a esta, a aposentadoria por invalidez ainda figura como um dos poucos benefícios previdenciários que garantem pagamento de renda mensal inicial correspondente a 100% do salário de benefício (art. 44 da Lei nº 8.213/91). Pelo menos enquanto não for aprovada a reforma previdenciária. Isso porque, de acordo com o texto da PEC nº 287/2016 e de seu relatório substitutivo, a porcentagem de 100% do salário de benefício estaria garantida apenas nos casos em que a invalidez decorrer de acidente de trabalho ou doença profissional ou do trabalho. Nos demais casos, como, por exemplo, uma invalidez resultante de doença grave, contagiosa ou incurável não relacionada ao trabalho, o valor do benefício será proporcional ao tempo de contribuição, garantindo-se apenas 70% do salário de benefício para todo segurado que não houver completado 25 anos do tempo de contribuição quando da constatação da invalidez total e permanente não decorrente de questões afetas ao trabalho.(13) Assim, se tomarmos o exemplo de um segurado acometido por câncer que contribua para a previdência há cinco anos, pelas regras atuais, estando ele total e permanentemente incapaz para o trabalho e insuscetível de reabilitação, receberia a aposentadoria por invalidez com RMI de 100% do salário de benefício, independentemente de sua idade; em sendo a PEC 287/2016 aprovada, sua aposentadoria, nesse mesmo caso, seria de apenas 70% do salário de benefício, o que representa uma perda de 30% do total de rendimentos, redução essa que, em verdade, pode significar a diferença entre vida e morte para alguém em luta contra o câncer.

Tamanho retrocesso em benefício com caráter protetivo tão acentuado é demonstrativo da ideia geral que perpassa todas as propostas contidas na PEC nº 287/2016, que se propõem à salvaguarda dos cofres públicos, ainda que isso signifique sacrificar não apenas o bem-estar, mas a própria vida dos trabalhadores e das trabalhadoras. E os “sacrifícios” feitos ao “deus mercado” dão-se sem a divulgação e a transparência acerca das manobras contábeis e das ilegalidades utilizadas na produção do tão propalado déficit previdenciário, como vem demonstrando a Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil (Anfip), ao longo dos anos, com a série histórica “Análise da Seguridade Social”.(14) Nesse sentido, nos impressiona a reiteração da mesma argumentação do “terror econômico” a cada novo ciclo de retração de direitos previdenciários, o que fica bem demonstrado pela recuperação das palavras de Aluísio Teixeira, datadas de 2004 e perfeitamente aplicáveis à conjuntura atual, 13 anos depois:

“A ideia de ‘reforma previdenciária’ tornou-se uma expressão cabalística ou um artigo de fé, perante o qual todos têm que se curvar e prestar homenagem. Intelectuais, políticos, a imprensa de um modo geral, muitos sem o menor conhecimento do assunto, proclamam a sua necessidade sem sequer discutir do que se trata. Formou-se um consenso nacional quanto à importância de realizá-la, sob o pretexto de que, sem ela, qualquer política voltada à retomada do crescimento econômico estará fadada ao mais rotundo fracasso.” (TEIXEIRA apud GENTIL, 2008, p. 356)

Nesse sentido, verifica-se que a nova rodada de diminuição dos patamares protetivos da previdência social, representada pela PEC nº 287/2016, caracteriza-se pelo empenho em aumentar a captação de recursos dos trabalhadores e das trabalhadoras, por meio do aumento do tempo de contribuição, ao mesmo tempo que dificulta o acesso às aposentadorias e rebaixa seus valores, além de incentivar rupturas no seio da classe trabalhadora, colocando trabalhadores e aposentados como “concorrentes”. Nessa dinâmica, não importa se, por exemplo, 80% da classe trabalhadora terá de trabalhar, em média, 50 anos no mercado formal para conseguir obter os 25 anos de tempo mínimo de contribuição e aposentar-se com benefício no valor de um salário mínimo, ou mesmo se os segurados incapazes para o trabalho receberão proteção absolutamente precária, com redução de até 30% no valor de seus benefícios. Afinal, como nos lembra Marcus Orione G. Correia, nessa dinâmica,

“o que importa é a geração de valores para o cumprimento de compromissos como superávit primário, ajuste fiscal e controle de inflação. A previdência social passa, com o tempo, a ser uma peça-chave para o cumprimento de metas ligadas a essa tríade. Não está em jogo, portanto, se os valores economizados implicarão a redução do déficit da previdência (embora se queira fazer crer o contrário) – que, neste modelo, existirá sempre, inclusive como forma de ameaçar e romper o pacto entre trabalhadores ativos e inativos.” (CORREIA, 2015, p. 17)

Constata-se, portanto, que a essência por detrás da aparência do respeito ao princípio do equilíbrio financeiro e atuarial – mais uma contribuição do movimento contínuo de retração de direitos previdenciários, de que é importante exemplo histórico a EC nº 20/98, que o cunhou – não se relaciona com a construção de uma “previdência social mais justa e equilibrada”, voltada para a garantia de proteção futura à classe trabalhadora, como querem fazer crer os defensores da PEC nº 287/2016. Em verdade, a defesa da “saúde financeira” da previdência está imbricada no processo de contínua e aprofundada reversão dos valores captados dos trabalhadores e das trabalhadoras, via contribuições sociais, para os capitais financeiros, retroalimentando o processo de financeirização da economia capitalista que, no Brasil, ganha contornos ainda mais trágicos diante da manutenção do título de “o país com as mais altas taxas de juros”.(15) Rasgar esse véu ideológico que sustenta a “inevitabilidade” da reforma é ponto central para o acirramento das lutas de classes e a garantia da possibilidade de reprodução da vida de milhões de brasileiros, ainda que nos marcos do capitalismo.

Considerações finais

Expostas as potenciais consequências do aumento do tempo de contribuição para acesso às principais modalidades de aposentadoria, espera-se ter conseguido esclarecer as reais motivações das propostas de reforma previdenciária, que passam ao largo da preocupação em garantir proteção social aos(às) segurados(as) do RGPS. Nesse sentido, para além do rechaço à instituição de idades mínimas sem correlação com a realidade do mercado de trabalho brasileiro, é preciso destacar que a exigência de 25 anos de tempo de contribuição como mínimo para acesso a um benefício pode vir a comprometer, no futuro, a aposentadoria de cerca de 80% da classe trabalhadora, prejudicando, sobretudo, os(as) mais vulneráveis economicamente, em especial, as mulheres. De imediato, as gerações do presente sentirão na carne o corte da proteção previdenciária, traduzido no rebaixamento de cerca de 30% nos valores de suas aposentadorias. Diante desse quadro, o posicionamento de todos(as) aqueles(as) que compreendem a previdência social como garantia de renda para quem trabalhou por toda a vida deve ser de oposição à PEC nº 287/2016 e ao seu relatório substitutivo, elaborados sem participação popular e com o intento de fazer com que, uma vez mais, os(as) trabalhadores(as) paguem, com suas aposentadorias, por uma crise que não produziram.


Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL – ANFIP; DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS – DIEESE. Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira. Brasília: Anfip/Dieese, 2017. Disponível em: <http://plataformapoliticasocial.com.br/wpcontent/uploads/2017/02/Documento_Completo.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2017.

BRASIL. Poder Executivo. Proposta de Emenda Constitucional n. 287. Altera os arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências. 05 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=
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BRASIL. Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda Constitucional n. 287, de 2016. Relatório Substitutivo do relator, Dep. Arthur Oliveira Maia. 19 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=
1547049&filename=SBT+2+PEC28716+%3D%3E+PEC+287/2016>. Acesso em: 2 jun. 2017.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Dilma e a vaca profanada. Blog da Boitempo, São Paulo, 28 jan. 2015. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/28/dilma-e-a-vaca-profanada/>. Acesso em: 26 set. 2015.

FALEIROS, Vicente de Paula. Previdência social: conflitos e consensos. Ser Social: Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília, Brasília, DF, v. 1, n. 1, p. 29-73, jan./jun. 1998.

FRANÇA, Álvaro Sólon de. A previdência social e a economia dos municípios. 6. ed. São Paulo: Anfip, 2011. Disponível em: <http://www.anfip.org.br/publicacoes/20120726210022_Economia-nos-municpios_26-07-2011_2011_Economia_dos_municipios.pdf>. Acesso em: 21 maio 2017.

GENTIL, Denise Lobato. Política econômica e seguridade social no período pós-1994. In: FAGNANI, Eduardo; HENRIQUE, Wilnês; LUCIO, Clemente Ganz (org.). Previdência social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. Debates contemporâneos, economia social e do trabalho. São Paulo: LTr, 2008. v. 4. p. 355-371.


Notas

1. O presente artigo é fruto da exposição realizada no painel “Reforma da Previdência” na audiência pública organizada pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Amatra 15) e por parceiros no dia 27 de abril de 2017, no auditório Zeferino Vaz do Instituto de Economia da Unicamp, em Campinas/SP.

2. Com destaque para as mobilizações ocorridas em, ao menos, 16 estados da Federação e no DF no dia 31 de março de 2017, que se constituíram em importante fator de organização para a deflagração da greve geral de 28 de abril de 2017. Informações sobre as mobilizações podem ser consultadas em todos os canais de mídia, com destaque para esta reportagem do Portal UOL, que traz um resumo sobre o que aconteceu nas principais cidades brasileiras: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/03/31/protestos-contra-a-reforma-da-previdencia-bloqueiam-vias-da-capital-e-da-grande-sp.htm>. Acesso em: 3 jun. 2017.

3. “Planalto apela à verba de publicidade para aprovar reforma da previdência” (Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-apela-a-verba-de-publicidade-para-aprovar-reforma-da-previdencia,70001734212>. Acesso em: 3 jun. 2017).

4. Para uma problematização da temática do “déficit previdenciário”, sugere-se a leitura dos artigos “Previdência: reformar para excluir” e “Reforma da previdência: direito ou negócio?”, do professor do Instituto de Economia da Unicamp Eduardo Fagnani, contidos na obra RAMOS, Gustavo Teixeira et al. (coords.). O golpe de 2016 e a reforma da previdência: narrativas de resistência. Bauru: Canal 6, 2017 (Projeto Editorial Práxis).

5. Os dados a seguir foram extraídos de relatórios elaborados por Anfip, IBGE, Dieese e Plataforma de Política Social, sobretudo dos documentos “Previdência: reformar para excluir?”, disponível em <https://issuu.com/politicasocial/docs/
documento_completo>, e “A previdência social e a economia dos municípios”, disponível em <http://www.anfip.org.br/publicacoes/20120726210022_
Economia-nos-municpios_26-07-2011_2011_Economia_dos_municipios.pdf>.

6. É interessante observar que, em todos os aspectos da proposta de reforma, as mulheres são mais intensamente prejudicadas, aumentando-se a idade para concessão da aposentadoria em dois anos para as seguradas em geral, inclusive para a segurada especial (agricultora em regime de economia familiar), e em cinco anos para a professora de ensino fundamental e médio. Tudo isso, claro, com desconsideração da persistência das desigualdades de gênero: de acordo com a pesquisa “Retratos das desigualdades de gênero e raça”, realizada pelo Ipea em parceria com a ONU Mulheres, as mulheres trabalham, em média, 7,5 horas semanais a mais que os homens e ganham cerca de 30% a menos nos mesmos cargos e tendo a mesma qualificação. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/retrato/>.

7. De acordo com o relatório substitutivo, apenas homens que tiverem, no mínimo, 55 anos e mulheres com, no mínimo, 53 anos na data da promulgação da emenda terão direito de se valer das regras de transição, que preveem um pedágio de 30% a mais do tempo que faltava para completarem, respectivamente, 35 e 30 anos de tempo de contribuição.

8. De acordo com as disposições do relatório substitutivo, a RMI será calculada pela seguinte fórmula: 70% do SB + 1,5% para cada ano que superar 25 anos de tempo de contribuição até 30 anos / + 2% para cada ano do período de 30 até 35 anos de tempo de contribuição / + 2,5% para cada ano que superar 40 anos de tempo de contribuição.

9. Dado apresentado pelo Prof. Claudio Alberto Castelo Branco Puty, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Pará, em sua fala durante o evento “Previdência social: um debate necessário”, realizado no dia 19 de abril de 2017, no salão nobre da Faculdade de Direito da USP, pelo Grupo de Educação Fiscal Estadual de São Paulo (Gefe-SP).

10. Ibidem.

11. Segundo os dados do último censo agropecuário (IBGE, 2006), a agricultura familiar representa 56% do valor da produção de animais de grande porte, 57% do valor agregado na agroindústria, 63% da horticultura e 80% da extração vegetal no país, tendo enorme representatividade na produção de gêneros alimentícios que compõem a nossa alimentação típica, tais como o feijão e a mandioca. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/50/agro_2006_agricultura_
familiar.pdf>. Acesso em: 21 maio 2017.

12. Ainda de acordo com o censo agropecuário, apenas três milhões (69%) dos produtores familiares declararam ter obtido alguma receita no seu estabelecimento durante o ano de 2006, ou seja, quase um terço da agricultura familiar declarou não ter obtido receita naquele ano (ibidem).

13. Isso significa que apenas segurados com mais de 25 anos de tempo de contribuição que se tornarem total e permanentemente incapazes em razão de doença grave, contagiosa ou incurável não relacionada ao trabalho receberão RMI superior a 70% do salário de benefício. Tomando a idade mínima de 16 anos para ingresso no mercado de trabalho, apenas a partir dos 42 anos um segurado acometido por neoplasia maligna incapacitante poderia se aposentar por invalidez recebendo mais que 70% do salário de benefício, passando a receber “incríveis” 71,5% como RMI de sua aposentadoria.

14. A última publicação, referente ao ano de 2015, que comprova o superávit de 11 bilhões nas contas da seguridade social, mesmo em um ano de agravamento da situação econômica do país, pode ser acessada no link que segue: <https://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/20161013104353_Analise-da-Seguridade-Social-2015_13-10-2016_Anlise-Seguridade-2015.pdf>.

15. “Apesar de 1ª queda em 4 anos, Brasil continua com juros reais mais altos do mundo”. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37710131>. Acesso em: 4 jun. 2017.




Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT):
. . Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n., ago. 2017. Disponível em:
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Acesso em: .


REVISTA DE DOUTRINA DA 4ª REGIÃO
PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRF DA 4ª REGIÃO - EMAGIS