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publicado em 25.08.2017
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Resumo Introdução A proposta de reforma da previdência social está sistematizada em dois documentos: a Proposta de Emenda Constitucional nº 287/2016 (PEC 287/2016), elaborada pela equipe econômica do atual governo e apresentada pelo Poder Executivo em 5 de dezembro de 2016, e o seu relatório substitutivo, elaborado pelo relator da comissão especial, Dep. Arthur Maia (PPS/BA), e divulgado em 19 de abril de 2017. Desde a sua apresentação, a reforma previdenciária tem sido objeto de críticas de intelectuais e organizações da classe trabalhadora, tendo sido fator de mobilização de levantes populares significativos em todo o país,(2) apesar dos esforços governamentais no sentido do convencimento acerca de sua “inevitabilidade”.(3)De início, salta à percepção a rapidez na tramitação da proposta: menos de seis meses foram gastos entre a elaboração do projeto e o parecer por sua admissibilidade, restando demonstrado o pouco empenho dos representantes políticos em debater suas propostas com a sociedade. Essa pressa pela aprovação da reforma previdenciária não se coaduna com as características essenciais da política pública de previdência social, que talvez possa ser considerada como a que demanda maior planejamento de longo prazo, já que as alterações implementadas afetam não apenas as gerações do presente, mas a vida e a segurança de trabalhadores(as) e aposentados(as) no futuro, afinal, como assevera Vicente de Paula Faleiros (1998, p. 30), “[...] Previdência Social não constitui somente um arcabouço técnico de seguro social, de caráter contributivo, mas um referencial de proteção social de um povo e de uma nação [...]”. Nesse sentido, tomando em consideração que grande parte da argumentação opositiva à reforma tem se estruturado em torno da instituição de idades mínimas para a aposentadoria, este artigo centra sua análise nas consequências do aumento do tempo de contribuição para as principais modalidades de aposentadoria do RGPS. Tal recorte temático não é feito ao acaso, mas pautado na percepção de que esse é o cerne do desmonte da proteção social a ser promovido pela PEC nº 287/2016 e por seu substitutivo, uma vez que outros benefícios previdenciários de importante impacto social, como a pensão por morte e o auxílio-doença, já foram reformados pela via infraconstitucional, por meio da medida provisória (MP) nº 664, já convertida na Lei nº 13.135/2015, e das MPs nº 739, de 2016, e nº 767, de 2017 – a primeira teve sua vigência encerrada e, por isso, é praticamente “reeditada” na segunda. Nessa linha, por questão de honestidade intelectual, é preciso dizer que, tomado o histórico legislativo a respeito da previdência social, constata-se que, pelo menos a cada dois anos, desde 1991, com a promulgação do Plano de Benefícios (Lei nº 8.213/91) e do Plano de Custeio (Lei nº 8.212/91), o Brasil passa por uma reforma previdenciária de maior ou menor intensidade, com o escopo exclusivo de redução dos patamares de proteção social, afetando, sobretudo, os(as) trabalhadores(as) que ocupam os postos mais precarizados no mercado de trabalho, com menores rendimentos, que veem a aposentadoria como um direito cada vez mais distante de concretização, diante do imperativo único de “proteção aos cofres públicos”.(4) Ademais, a opção por tratar do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), gerenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), deve-se ao fato de que ele é o responsável pela cobertura previdenciária de todos que trabalham na iniciativa privada, bem como dos servidores públicos não abrangidos por regimes próprios. Entretanto, antes de abordar os aspectos normativos acerca das mudanças nas aposentadorias, entende-se que seja imprescindível para o debate conhecer um pouco da realidade estatística acerca da previdência social e do mercado de trabalho no Brasil. Com isso, pretende-se evitar que o debate acerca da reforma previdenciária se desvincule do chão da história e do aspecto de garantia da possibilidade de reprodução da vida de trabalhadores e trabalhadoras, afinal, a estratégia mais sagaz para obter apoio à redução contínua de direitos previdenciários tem sido transformar a previdência em “assunto técnico”, em “pauta econômica”, desvinculando-a da realidade de seus(suas) beneficiários(as)(5): de acordo com o IBGE, para cada benefício previdenciário concedido, são, em média, beneficiadas 2,5 pessoas, sendo que 69% dos benefícios concedidos têm valor de até um salário mínimo, e 92% têm valor inferior a três salários mínimos (ou seja, valores inferiores a R$ 2.800,00). Em 70% dos municípios brasileiros, o montante que circula via concessão de benefícios previdenciários supera os repasses do Fundo de Participação dos Municípios, e, em 82%, esse montante supera o valor da arrecadação tributária municipal. Tais dados demonstram que, diferentemente dos discursos midiáticos acerca das “superaposentadorias”, cerca de 70% dos benefícios previdenciários do RGPS não superam o valor do mínimo e, ainda assim, são fatores cruciais para a sobrevivência das famílias brasileiras e a movimentação das economias nos municípios. Feita a abordagem estatística, passa-se agora ao panorama normativo, com uma observação de caráter metodológico: as informações estruturantes da argumentação produzida foram extraídas do texto da PEC nº 287/2016 e de seu relatório substitutivo, cujas referências completas encontram-se no tópico final deste artigo. Dado tratar-se de temática na pauta do dia, ainda há carência de materiais teóricos atinentes ao tema, razão pela qual a construção se limita quase que exclusivamente aos textos normativos, esperando-se que a publicação deste trabalho contribua para o processo de reflexão e debate acadêmico. 1 O fim das modalidades autônomas de aposentadoria por tempo de contribuição e por idade: contribuir mais para receber menos 2 O rebaixamento de valores das aposentadorias por invalidez: “salvar” a previdência para quem? “A ideia de ‘reforma previdenciária’ tornou-se uma expressão cabalística ou um artigo de fé, perante o qual todos têm que se curvar e prestar homenagem. Intelectuais, políticos, a imprensa de um modo geral, muitos sem o menor conhecimento do assunto, proclamam a sua necessidade sem sequer discutir do que se trata. Formou-se um consenso nacional quanto à importância de realizá-la, sob o pretexto de que, sem ela, qualquer política voltada à retomada do crescimento econômico estará fadada ao mais rotundo fracasso.” (TEIXEIRA apud GENTIL, 2008, p. 356) Nesse sentido, verifica-se que a nova rodada de diminuição dos patamares protetivos da previdência social, representada pela PEC nº 287/2016, caracteriza-se pelo empenho em aumentar a captação de recursos dos trabalhadores e das trabalhadoras, por meio do aumento do tempo de contribuição, ao mesmo tempo que dificulta o acesso às aposentadorias e rebaixa seus valores, além de incentivar rupturas no seio da classe trabalhadora, colocando trabalhadores e aposentados como “concorrentes”. Nessa dinâmica, não importa se, por exemplo, 80% da classe trabalhadora terá de trabalhar, em média, 50 anos no mercado formal para conseguir obter os 25 anos de tempo mínimo de contribuição e aposentar-se com benefício no valor de um salário mínimo, ou mesmo se os segurados incapazes para o trabalho receberão proteção absolutamente precária, com redução de até 30% no valor de seus benefícios. Afinal, como nos lembra Marcus Orione G. Correia, nessa dinâmica, “o que importa é a geração de valores para o cumprimento de compromissos como superávit primário, ajuste fiscal e controle de inflação. A previdência social passa, com o tempo, a ser uma peça-chave para o cumprimento de metas ligadas a essa tríade. Não está em jogo, portanto, se os valores economizados implicarão a redução do déficit da previdência (embora se queira fazer crer o contrário) – que, neste modelo, existirá sempre, inclusive como forma de ameaçar e romper o pacto entre trabalhadores ativos e inativos.” (CORREIA, 2015, p. 17) Constata-se, portanto, que a essência por detrás da aparência do respeito ao princípio do equilíbrio financeiro e atuarial – mais uma contribuição do movimento contínuo de retração de direitos previdenciários, de que é importante exemplo histórico a EC nº 20/98, que o cunhou – não se relaciona com a construção de uma “previdência social mais justa e equilibrada”, voltada para a garantia de proteção futura à classe trabalhadora, como querem fazer crer os defensores da PEC nº 287/2016. Em verdade, a defesa da “saúde financeira” da previdência está imbricada no processo de contínua e aprofundada reversão dos valores captados dos trabalhadores e das trabalhadoras, via contribuições sociais, para os capitais financeiros, retroalimentando o processo de financeirização da economia capitalista que, no Brasil, ganha contornos ainda mais trágicos diante da manutenção do título de “o país com as mais altas taxas de juros”.(15) Rasgar esse véu ideológico que sustenta a “inevitabilidade” da reforma é ponto central para o acirramento das lutas de classes e a garantia da possibilidade de reprodução da vida de milhões de brasileiros, ainda que nos marcos do capitalismo. Considerações finais Referências BRASIL. Poder Executivo. Proposta de Emenda Constitucional n. 287. Altera os arts. 37, 40, 109, 149, 167, 195, 201 e 203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá outras providências. 05 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid= BRASIL. Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda Constitucional n. 287, de 2016. Relatório Substitutivo do relator, Dep. Arthur Oliveira Maia. 19 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor= CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Dilma e a vaca profanada. Blog da Boitempo, São Paulo, 28 jan. 2015. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2015/01/28/dilma-e-a-vaca-profanada/>. Acesso em: 26 set. 2015. FALEIROS, Vicente de Paula. Previdência social: conflitos e consensos. Ser Social: Revista do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília, Brasília, DF, v. 1, n. 1, p. 29-73, jan./jun. 1998. FRANÇA, Álvaro Sólon de. A previdência social e a economia dos municípios. 6. ed. São Paulo: Anfip, 2011. Disponível em: <http://www.anfip.org.br/publicacoes/20120726210022_Economia-nos-municpios_26-07-2011_2011_Economia_dos_municipios.pdf>. Acesso em: 21 maio 2017. GENTIL, Denise Lobato. Política econômica e seguridade social no período pós-1994. In: FAGNANI, Eduardo; HENRIQUE, Wilnês; LUCIO, Clemente Ganz (org.). Previdência social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. Debates contemporâneos, economia social e do trabalho. São Paulo: LTr, 2008. v. 4. p. 355-371.
1. O presente artigo é fruto da exposição realizada no painel “Reforma da Previdência” na audiência pública organizada pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região (Amatra 15) e por parceiros no dia 27 de abril de 2017, no auditório Zeferino Vaz do Instituto de Economia da Unicamp, em Campinas/SP.
2. Com destaque para as mobilizações ocorridas em, ao menos, 16 estados da Federação e no DF no dia 31 de março de 2017, que se constituíram em importante fator de organização para a deflagração da greve geral de 28 de abril de 2017. Informações sobre as mobilizações podem ser consultadas em todos os canais de mídia, com destaque para esta reportagem do Portal UOL, que traz um resumo sobre o que aconteceu nas principais cidades brasileiras: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/03/31/protestos-contra-a-reforma-da-previdencia-bloqueiam-vias-da-capital-e-da-grande-sp.htm>. Acesso em: 3 jun. 2017. 3. “Planalto apela à verba de publicidade para aprovar reforma da previdência” (Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-apela-a-verba-de-publicidade-para-aprovar-reforma-da-previdencia,70001734212>. Acesso em: 3 jun. 2017). 4. Para uma problematização da temática do “déficit previdenciário”, sugere-se a leitura dos artigos “Previdência: reformar para excluir” e “Reforma da previdência: direito ou negócio?”, do professor do Instituto de Economia da Unicamp Eduardo Fagnani, contidos na obra RAMOS, Gustavo Teixeira et al. (coords.). O golpe de 2016 e a reforma da previdência: narrativas de resistência. Bauru: Canal 6, 2017 (Projeto Editorial Práxis). 5. Os dados a seguir foram extraídos de relatórios elaborados por Anfip, IBGE, Dieese e Plataforma de Política Social, sobretudo dos documentos “Previdência: reformar para excluir?”, disponível em <https://issuu.com/politicasocial/docs/ 6. É interessante observar que, em todos os aspectos da proposta de reforma, as mulheres são mais intensamente prejudicadas, aumentando-se a idade para concessão da aposentadoria em dois anos para as seguradas em geral, inclusive para a segurada especial (agricultora em regime de economia familiar), e em cinco anos para a professora de ensino fundamental e médio. Tudo isso, claro, com desconsideração da persistência das desigualdades de gênero: de acordo com a pesquisa “Retratos das desigualdades de gênero e raça”, realizada pelo Ipea em parceria com a ONU Mulheres, as mulheres trabalham, em média, 7,5 horas semanais a mais que os homens e ganham cerca de 30% a menos nos mesmos cargos e tendo a mesma qualificação. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/retrato/>. 7. De acordo com o relatório substitutivo, apenas homens que tiverem, no mínimo, 55 anos e mulheres com, no mínimo, 53 anos na data da promulgação da emenda terão direito de se valer das regras de transição, que preveem um pedágio de 30% a mais do tempo que faltava para completarem, respectivamente, 35 e 30 anos de tempo de contribuição. 8. De acordo com as disposições do relatório substitutivo, a RMI será calculada pela seguinte fórmula: 70% do SB + 1,5% para cada ano que superar 25 anos de tempo de contribuição até 30 anos / + 2% para cada ano do período de 30 até 35 anos de tempo de contribuição / + 2,5% para cada ano que superar 40 anos de tempo de contribuição. 9. Dado apresentado pelo Prof. Claudio Alberto Castelo Branco Puty, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Pará, em sua fala durante o evento “Previdência social: um debate necessário”, realizado no dia 19 de abril de 2017, no salão nobre da Faculdade de Direito da USP, pelo Grupo de Educação Fiscal Estadual de São Paulo (Gefe-SP). 11. Segundo os dados do último censo agropecuário (IBGE, 2006), a agricultura familiar representa 56% do valor da produção de animais de grande porte, 57% do valor agregado na agroindústria, 63% da horticultura e 80% da extração vegetal no país, tendo enorme representatividade na produção de gêneros alimentícios que compõem a nossa alimentação típica, tais como o feijão e a mandioca. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/50/agro_2006_agricultura_ 12. Ainda de acordo com o censo agropecuário, apenas três milhões (69%) dos produtores familiares declararam ter obtido alguma receita no seu estabelecimento durante o ano de 2006, ou seja, quase um terço da agricultura familiar declarou não ter obtido receita naquele ano (ibidem). 13. Isso significa que apenas segurados com mais de 25 anos de tempo de contribuição que se tornarem total e permanentemente incapazes em razão de doença grave, contagiosa ou incurável não relacionada ao trabalho receberão RMI superior a 70% do salário de benefício. Tomando a idade mínima de 16 anos para ingresso no mercado de trabalho, apenas a partir dos 42 anos um segurado acometido por neoplasia maligna incapacitante poderia se aposentar por invalidez recebendo mais que 70% do salário de benefício, passando a receber “incríveis” 71,5% como RMI de sua aposentadoria. 14. A última publicação, referente ao ano de 2015, que comprova o superávit de 11 bilhões nas contas da seguridade social, mesmo em um ano de agravamento da situação econômica do país, pode ser acessada no link que segue: <https://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/20161013104353_Analise-da-Seguridade-Social-2015_13-10-2016_Anlise-Seguridade-2015.pdf>.
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Referência bibliográfica (de acordo com a NBR 6023:2002/ABNT): |
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